Carta ao Sr. Primeiro Ministro – preservação das florestas

Exmo Sr. Primeiro Ministro,
O espetáculo a que temos assistido nas últimas semanas — e que infelizmente se repete todos os anos — é degradante. Incêndios e mais incêndios, que as televisões exploram muito para além do aceitável, numa vertigem de reality show altamente prejudicial.
É sabido, há muitos anos, que essa exploração diária, sensacional e doentia dos incêndios pelas televisões, com diretos intermináveis e inúteis, com a repetição doentia das mesmas imagens de floresta a arder, é geradora de fenómenos de mimetismo incendiário. Ou seja, o tédio, associado a um sadismo intrínseco ou a doença mental, leva a que muitas pessoas provoquem deliberadamente fogos, especialmente nas zonas do interior em que, normalmente, “nada se passa”. Quanto mais não seja para dizerem para si mesmas: “Cá está, fui eu o causador deste alvoroço todo, que até dá nas televisões! Que importante eu sou! Que poder eu tenho!”
Queira ler, por favor, o excelente e muito oportuno artigo que o jornalista António Marujo escreveu no ano passado, precisamente a este propósito. Devia ser de leitura obrigatória em todos os canais da rede pública e privada.
O que quer que o seu governo possa fazer a este respeito, julgo que o deve fazer. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social deveria impor regras mais restritas relativamente à emissão sensacionalista de incêndios. Porque as atuais práticas vão muito para além do dever de informação.
A destruição da nossa floresta é um assunto muito, muito sério. Vagas de incêndios libertam uma quantidade incomensurável de partículas finas para a atmosfera, prejudicando gravemente a qualidade do ar em toda a parte (veja-se como tem estado Lisboa estes dias, com este cheiro a queimado e com o céu coberto por uma leve e translúcida camada de fumo). E nas grandes cidades, este problema associa-se a um outro já de si altamente prejudicial, e também cada vez mais descontrolado — a poluição automóvel.
Estão bem estudados os efeitos perniciosos das partículas finas na saúde: aumento da incidência do cancro do pulmão e outros cancros; agravamento de doenças do sistema respiratório; doenças cardiovasculares; demência, etc. Trata-se de um assunto demasiado sério para ser objeto de reality show televisivo, ou seja, para caber na lógica da luta por audiências. E não devemos esquecer-nos de outro efeito pernicioso dos incêndios: a poluição dos lençóis freáticos — a água que bebemos, ou que rega os legumes e frutas que comemos –, que ocorre quando a chuva, ao penetrar no solo, transporta consigo cinzas e outros produtos tóxicos gerados pela combustão, contaminando assim a água subterrânea.
Andamos todos a brincar com o fogo, literal e figurativamente, quando “brincamos” com os incêndios como se fossem um empolgante reality show, e não conseguimos resolver este problema nem compreendemos a magnitude do mal envolvido.
A floresta é essencial! E não estou a falar de um ponto de vista económico, mas tão-só, estritamente, do ponto de vista de uma vida com qualidade, digna e verdadeiramente humana. Ela fornece o oxigénio de que precisamos para respirar, retém o dióxido de carbono, liberta humidade para a atmosfera — contribuindo, por exemplo, para controlar a temperatura, ou gerar chuva –, etc. Ela é — ou devia ser, se fosse devidamente preservada e cuidada — o contraponto terapêutico, natural, são, da vida urbana artificial, acelerada e frequentemente pouco sã em que a maior parte de nós vive.
Temos, como de pão para a boca, de proteger as nossas florestas, de preservar os nossos santuários naturais, os nossos parques e matas nacionais e, se possível, criar mais espaços desse tipo. Precisamos de mais áreas de bosque dotadas de maior variedade arborícola de tipo autóctone. Fala-se hoje tanto em saúde mental, e não se compreende que, sem floresta, sem santuários naturais, não há refúgio. Sem o contraponto da floresta, a temperatura nas cidades tenderá a tornar-se mais opressiva — e letal — no verão, o ar tornar-se-á, em geral, mais poluído e impuro, a vida urbanizada, enfim, tornar-se-á mais difícil e menos humana. Não vivemos só de cimento, cidades e megalópoles — mas de todo o tecido natural que nos envolve, o qual tendemos, estupidamente, a menosprezar ou a considerar apenas do ponto de vista da exploração económica. Temos de aprender a conjugar o crescimento das cidades com a florestação, harmonizando ambos (ainda há poucos anos, julgo que em Espanha, se propôs plantar uma vasta floresta ao redor de Madrid, precisamente porque se compreendeu os benefícios da vegetação no controlo da temperatura urbana, e não só…). Mais parques, dentro, fora, em torno das urbes. Uma arquitetura, enfim, mais harmonizada com o mundo natural.
Temos, de certa forma, de “sacralizar” o mundo natural, não no sentido ingénuo, romântico, de o considerar distinto e superior à civilização ou ao próprio Ser Humano — ele próprio um ser natural cuja natureza é, também, cultura e artifício –, mas no sentido de o considerar um complemento indispensável à plenitude de uma existência humana digna. Não no sentido de o idolatrar, mas no sentido de lhe conferir um valor e uma dignidade correlativos ao valor e à dignidade do Ser Humano.
Sr. Primeiro Ministro, exorto-o a levar a cabo políticas que possam, efetivamente, prevenir incêndios e preservar o bem comum inalienável que uma floresta ampla, variada, cuidada, representa para todos nós. Uma política para a floresta. A meu ver, é necessário, por exemplo, mobilizar exército e bombeiros, e mesmo voluntários — um corpo cívico de voluntários seria algo interessante a pensar — para, pelo menos, durante o outono e a primavera, limparem e desmatarem zonas florestais. Recordo só que existem, para além de centenas de milhar de desempregados, centenas de milhar de jovens “nem-nem” (não estudam, nem trabalham), que voluntária ou coercivamente — vá lá, admitamos só para já o voluntariado — poderiam prestar um importante serviço cívico ao país, ao mesmo tempo que beneficiariam de uma experiência altamente pedagógica de vinculação a um território que é seu, mas do qual, hoje, pouco ou nada conhecem, e portanto, também pouco ou nada lhes interessa. Julgo que seria muito importante envolver as pessoas, especialmente os jovens que vivem nos grandes centros urbanos e conhecem apenas essa realidade, em ações que beneficiem todo o território. Eis uma bela escola de verdadeiro patriotismo, são patriotismo, e não daquele patrioteirismo bacoco que emerge quando joga a seleção. Eis uma escola – prática – de sustentabilidade ambiental e coesão territorial!
O diagnóstico — como sempre em Portugal — está feito há muitos anos. O que é preciso agora é agir. É consensual que a desertificação do interior e o isolamento que daí decorre para populações frequentemente envelhecidas, também não ajuda de todo à preservação da floresta e prevenção dos incêndios. Precisamos de fixar jovens e menos jovens no interior, favorecer o retorno à agricultura e à pecuária, valorizar cultural e até turisticamente a floresta e os santuários naturais; eventualmente, precisamos de um corpo de guarda florestal, nem que seja só sazonal, nos parques e matas nacionais, mas também nas áreas florestais próximas dos centros urbanos e vilas do interior. Precisamos de florestação, vigilância, preservação. E de perceber que isso não é dinheiro deitado fora, mas um investimento prioritário para as gerações do presente e do futuro.
E também precisamos de menos sensacionalismo incendiário.
Muito grato pela sua atenção,
Subscrevo-me atenciosamente,
Ruben David Azevedo
observador