Reformar o Estado? Como?

Na semana passada tomou posse o XXV governo constitucional. Já se percebeu que Luis Montenegro, com a maioria reforçada da AD, irá tentar assegurar a aprovação das principais leis (Orçamentos de Estado e leis com maior impacto estrutural no país), quer à sua esquerda quer à sua direita. Não havendo coligação formal, nem acordo de incidência parlamentar, será mesmo a única e a melhor possibilidade de governação. Tudo indica que, sendo José Luís Carneiro o futuro líder do PS que este governo terá um estado de graça da oposição socialista de pelo menos dois anos. Já a oposição do Chega será certamente mais errática e ao sabor das circunstâncias. Se é certo que o PS não deverá dar cheques em branco à AD, também o é que não deverá ser um foco de instabilidade política.
Numa carta aberta que enderecei aqui a Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro antes das eleições de 2024, defendi que o perdedor deveria dar condições mínimas de governação ao ganhador. Só assim a democracia pode funcionar. Há um tempo mínimo para saber se as negociações e acordos que a AD fez com as diferentes corporações na administração pública e que irá fazer (registo que um ex-dirigente dos bombeiros é um nóvel secretário de Estado) e que se repercutirá em 2025, 2026 e 2027 são compagináveis com a sustentabilidade das finanças públicas com um produto a crescer menos que as previsões do governo.
Do ponto de vista da orgânica do governo uma das principais novidades é a criação de um novo cargo, o de Ministro Adjunto e da Reforma do Estado. Gonçalo Matias terá duas secretarias de Estado uma para a digitalização outra para a simplificação. Não é a primeira, nem a segunda nem a quinta vez que num governo constitucional existe uma pasta de reforma do Estado ou de modernização administrativa. Já houve um grande estudo conducente a uma reforma organizacional do Estado em 2006 no primeiro governo de José Sócrates – o PRACE — que mobilizou muitos recursos e deu origem a um relatório final global e relatórios setoriais e alterou a orgânica de todos os ministérios, reduzindo estruturas e alterando a macroestrutura de apoio à governação que passou a integrar novos organismos — os gabinetes de planeamento e estratégia (GPEARI) — a par das Inspeções gerais e dos então criados Controladores Financeiros. Os GPEARI, foram efetivamente criados, mantêm-se nalguns casos com sucesso, já os controladores financeiros foram entidades precárias que não chegaram a desempenhar efetivamente as suas funções (se o fossem poderíamos porventura ter evitado a bancarrota).
Ao PRACE seguiu-se o PREMAC já com Pedro Passos Coelho em 2011 que, com a troika entre nós, seguiu a senda da diminuição de estruturas nomeadamente abolindo os controladores financeiros e os governos e governadores civis. Ambos os programas reduziram estruturas como pode ser visto aqui no relatório da DGAEP. Porém, a sua análise reduz-se precisamente apenas ao impacto no número de estruturas. Ao nível dos processos os principais avanços foram em sucessivos programas SIMPLEX. Um bom ponto de partida deste governo seria começar por realizar a análise do impacto destas reformas na despesa pública, nos efetivos de recursos humanos e na qualidade da prestação de serviços a cidadãos e empresas.
Importa então questionar quais os principais objetivos da agora prometida reforma, até porque no programa eleitoral da AD veem enunciados muitos objetivos, que vão desde a simplificação e desburocratização até uma “análise profunda e crítica de todas as estruturas da administração pública”.
Para simplificar, vou apenas começar por desmistificar um objetivo falacioso e disruptivo em relação a uma hipotética reforma do Estado, para depois clarificar pequenas reformas que fazem sentido e em que se deveria apostar.
Há, nalguns setores, a narrativa que uma profunda reforma organizacional do Estado, com reorganizações e fusões de serviços, traria ganhos de eficiência, levaria a poupanças significativas e a uma redução de despesa pública que por sua vez permitiria uma descida de impostos. Esta visão da reforma é simultaneamente simplista e falaciosa. Parte de um desconhecimento profundo da estrutura da despesa pública da administração central que é, numa proporção muito significativa, não nos serviços prestados pela administração central (educação, saúde, justiça, segurança, etc.), mas sim canalizada para fora do Estado, nomeadamente quer em prestações sociais às famílias (em particular com pensões), no apoio às empresas, no pagamento dos juros da dívida pública e nas transferências para a administração regional e local. Torna-se evidente que uma alteração institucional nas estruturas da administração não afetará a despesa pública significativamente. Convém recordar que só as prestações sociais representam 40% da despesa pública e que há apenas duas variáveis que determinam a evolução da despesa pública: pensões e despesas com pessoal. Não só essa eventual reforma organizacional não teria o impacto financeiro desejado como provocaria mais uma desestruturação dos serviços com correspondente desmotivação de muitos trabalhadores pela instabilidade organizacional provocada. É bom que se aprenda com as experiências passadas como seja a extinção do SEF e sua substituição pela AIMA, etc.
A perspetiva que me parece correta não é a de pensar em grandes reformas organizacionais, mas sim em atacar de forma transversal certas áreas de governação, com vista a ganhos de eficiência que melhorem efetivamente a qualidade dos serviços aos cidadãos e empresas, desburocratizando, mas sem que a maior celeridade nos processos signifique a desregulação em áreas em que o mercado fracassa, nomeadamente no campo ambiental. Certamente digitalizando também, em áreas como a justiça, mas com as necessárias revisões dos códigos de processo penal e do procedimento administrativo, para permitir maior celeridade nos processos e reduzir as manobras dilatórias que eternizam processos.
As grandes reformas devem situar-se ao nível micro do funcionamento dos processos judiciais ou, noutras áreas cruciais como a segurança social ou a saúde. O caso vindo a lume recentemente de um cirurgião de 33 anos a faturar 400 mil euros, em dez sábados no Hospital de Santa Maria (HSM), dá que pensar se não deveríamos voltar a ter um controlador financeiro no Ministério da Saúde, se os mecanismos de controle interno da execução orçamental nos grandes hospitais como o HSM funcionam, se as regras e procedimentos utilizadas no SIGIC constituem um correto sistema de incentivos e se a Inspeção Geral de Saúde tem os recursos humanos e tecnológicos adaptados à sua missão. Como em todas as profissões, na saúde há profissionais com ética e sem ética. Um profissional sem ética que é mais bem remunerado em cirurgias adicionais fora do seu horário normal de trabalho, tenderá obviamente a diminuir a sua produtividade no horário normal, para maximizar as cirurgias aos fins de semana. Se ainda por cima for ele a codificar o seu ato médico, cujo valor obviamente varia em função do ato, e se para terminar não houver nenhum tipo de monitorização da sua atividade está criada a tempestade perfeita para o desperdício de recursos no SNS.
Não precisamos de uma reforma do Estado que crie instabilidade organizacional na administração pública. Precisamos, isso sim, de reformas da micro gestão do Estado, simplificando, digitalizando e desburocratizando para que as instituições existentes desempenhem melhor a sua missão de servir os cidadãos e as empresas.
observador