A deriva após o auspicioso começo de João Lourenço

Preferia abrir um artigo sobre a situação em Angola, mas centrado na figura de João Lourenço, como este é, com uma manifestação de reconhecimento por algo como o mérito com que o seu presidente tem exercido o seu alto cargo. O conforto que isso para mim representaria, tendo em conta as expectativas benignas com que em 2017 acolhi a sua eleição, a maior parte das quais alimentadas pela convicção de estar perante “o homem certo”!
A situação em que Angola e os angolanos hoje estariam, melhor que em 2017, seria, porém, a parte mais gratificante do reconhecimento que gostaria de fazer, mas não posso fazer, proficuidade da acção de João Lourenço. Um balanço positivo do seu mandato, como o que adviria de uma melhoria da situação no país, teria sempre como premissa a acção de um bom governo, o seu.
Não sei se João Lourenço tem a devida consciência da sua impopularidade, tantas vezes vincada pela rudeza com que é tratado. A torre de marfim em que vive (o oposto da descontração que de início pareceu ter adoptado), já é, por si só, obnubiladora de uma precisa visão da realidade. Depois, há os “adoradores” que pululam à sua volta, as eles se juntando a legião de pró-cônsules que ao serviço do partido-Estado estão espalhados pelo país, uns e outros dizendo-lhe apenas aquilo que julgam querer ouvir.
A sua impopularidade é acima de tudo fruto de cavados sentimentos de descontentamento e/ou de desânimo, causados por um ror de males pelos quais aqueles que deles padecem instintivamente o responsabilizam. Os seus vastíssimos poderes têm a desvantagem de se transformar num ónus quando não são exercidos como no juízo da população deviam ser. E sentem que não são. Na penúria, nas desigualdades e nas injustiças que sofrem vêm a cara de João Lourenço.
O desemprego, a pobreza, a fome, a lástima em que vão o ensino e a saúde, alguns desses males, não são, tanto quanto se tenta fazer crer, fruto de adversas conjunturas económicas e financeiras ou de passados revezes pandémicos. Sequer dos cofres vazios que João Lourenço se queixa de ter encontrado. São sobretudo consequência de uma governação que convive com vícios antigos, porventura até ampliados, entre eles a incompetência, a alta corrupção de Estado e o esbanjamento de dinheiros públicos. Os tempos de vacas magras causados pela drástica diminuição das receitas do petróleo apenas “complicam” as coisas.
O queixume que se ouve por todo lado, o de que a vida é agora pior do que no tempo de José Eduardo dos Santos, vale como um veredito que deveria merecer a especial atenção de João Lourenço. Desde logo pelo embaraço que é compará-lo desfavoravelmente com alguém que apoucou e tratou com manifesto desdém. Depois, por que o queixume advém de sentimentos de insatisfação advindos do não atendimento de “necessidades básicas” da população. Ao menos que fosse por outras, mais difíceis de atender.
O país do Angosat, nome do satélite que faz de Angola o único da África Subsariana a dispor de um, privativo; das pomposas logísticas em que se apoiam as amiudadas viagens presidenciais, incluindo uma luxuosa frota de aviões; da vasta e cara rede de embaixadas e consulados espalhados pelo mundo; das extravagâncias do programa comemorativo dos cinquenta anos de independência; dos elevados gastos em acções externas de lobbying e de influência – esse país, elevado aos píncaros de potência regional, não consegue satisfazer necessidades básicas da sua população! É obra.
Faz tempo que o labor de todos os braços do regime, o executivo, o legislativo, o diplomático e os outros – o secreto, na pessoa do seu tentacular aparelho de segurança; o da propaganda apoiado numa máquina em constante acrescento – trabalham para atingir um objectivo supremo: dividir e enfraquecer a oposição de modo a reduzi-la a uma expressão insignificante como competidor político e eleitoral.
O propósito de garantir uma vitória do MPLA nas eleições de 2027, que é o que se pretende, é também o que anima outra frente, esta representada por um zeloso frenesim no sentido de alterar leis e regulamentos eleitorais, garantir o controlo de órgãos eleitorais e tribunais, bem como de todas as instituições do Estado com capacidade para intervir no domínio político-eleitoral.
A história eleitoral do MPLA e do seu regime, a verdadeira, não é uma história edificante. Ao longo de dezasseis anos, os anos dos seus tempos de partido único, feita de meras encenações ou de arremedos de braço no ar. Depois disso – e já lá vão mais de trinta anos – feita de vitórias eleitorais obtidas por obra e graça de manipulações e fraudulências calculadas para obstar a qualquer alternância de poder.
Uma pequena “desatenção” no funcionamento da “máquina de fabricar resultados eleitorais”, constituída pela CNE e por uma estrutura informal instalada no partido, acarretou nas eleições de 2022 a perda pelo MPLA do seu bastião de Luanda, como era considerado. O sobressalto, prova provada de que o regime não está em condições de sair vencedor de eleições livres e justas, explica o frenesim em curso no sentido de minar a oposição e fazer com que a máquina eleitoral não falhe da próxima vez..
Os propósitos reformistas com que João Lourenço se apresentou em 2017 ficaram pelo caminho sob pressão dos mil e um medos que o foram assaltando, todos eles advertindo-o para a alta probabilidade de o MPLA vir a perder o poder se fossem levados por diante. Um Estado arejado, moderno e de instituições independentes, boas leis e justas políticas, como aquele a que o seu anunciado espírito reformista poderia ter dado lugar, jamais cumpriria o desígnio da conservação do poder.
O Estado que serve para isso é o que existe – partidarizado e/ou controlado por oligarquias e outros grupos de interesse. Que não tem que provar nada nem tem que prestar contas; que pode ser dissoluto e incompetente; que substitui a reconciliação e a tolerância pela dominação e pela tensão. No fim lá estará a fraude eleitoral para tornar meramente decorativa a arma do voto de que nas democracias de verdade os eleitores dispõem para julgar quem exerce mal o poder.
Tentar minar a UNITA e afadigar-se em controlar instituições críticas do Estado, em especial a máquina eleitoral e os órgãos judiciais com competência para julgar diferendos eleitorais (o aparelho de segurança também) não é nada de novo. Tem antecedentes remotos. A novidade é o afã, a pressa e o alcance com que a presente campanha se tem desenvolvido, assim como o seu alargamento aos planos da opressão e da repressão política.
Proibir ou destroçar manifestações tidas hostis e deter os seus promotores; sujeitar a imprensa a um regime rédea curta; interferir na vida interna de instituições como Ordem dos Advogados porque o seu bastonário é considerado “desafecto”; gastar rios de dinheiro na “capacitação” do aparelho de segurança e da polícia militarizada, aumentando os seus efectivos, modernizando o seu equipamento e meios – o que é que tido isso quer dizer?
O regime autocrático que João Lourenço encabeça, sentado na cadeira de um partido parado no tempo e fechado numa fortaleza, é fraco, comparado com o do seu antecessor. Tem contra si parte substancial da população – uma população, vale lembrar, maioritariamente jovem, em geral mais instruída, de mais apurada consciência cívica e política e de acrescido poder reivindicativo. Na sociedade civil são mais as organizações que o menosprezam do que as que o aplaudem. No seu próprio partido não faltam alas que o contestam, como nenhum outro presidente o foi.
Em parte alguma do mundo um partido há meio século arvorado em senhor absoluto do poder não gere fadiga e saturação na sociedade. Até por inércia isso acontece, mas mais ainda quando a essa longevidade corresponde uma história de muitos buracos negros. Da mistura de sentimentos de descontentamento devidos pelo manifesto mau estado do país, com outros, de desespero, provocados pela deriva da opressão, pode vir a não resultar nada de bom. Menos ainda quando também entram na equação sentimentos de saturação.
Reclamo para mim a primazia de ter sido, em 2014, o primeiro jornalista a prever que João Lourenço estava destinado a ser o próximo presidente. Era para aí que apontavam factos de que ia tendo conhecimento e cuidava de analisar. Os tempos que a seguir vierem foram confirmando a solidez da projecção. Não seria o primeiro, apenas mais um, a prever que João Lourenço será provavelmente mal lembrado se não inverter o rumo que a sua política segue.
O débil estado da economia de Angola não é estranho a uma endémica falta de investimento – não o investimento a fingir, parasitário, mas o outro, capaz de fomentar desenvolvimento, de gerar emprego e criar riqueza. O único investimento à altura desse “milagre”, porque dispõe de capitais, tecnologia e know how, é normalmente exigente. Evita países onde há corrupção, onde os tribunais não são independentes e onde as leis são desequilibradas. Ou, simplesmente, que podem tornar instáveis.
observador