Plano Nocional de Leitura (XXXVII)

Os seres humanos são os únicos animais capazes de ler livros, visitar ermidas românicas e jantar em restaurantes. Nem todos o fazem: por exemplo, quase ninguém lê livros ou visita ermidas. Ao considerar fazê-lo é costume confiar nas opiniões de pessoas especiais que o tenham feito antes, por exemplo pessoas que conhecemos. Mas conhecer uma pessoa nem sempre ajuda a confiar nela; não conhecemos os desconhecidos; e não é fácil perceber quem é especial.
Quando há muita gente a fazer a mesma coisa, em vez de confiar em pessoas especiais preferimos por vezes confiar na opinião da maioria não-especial daqueles que já fizeram aquilo que estamos a considerar fazer. É hoje comum decidir visitar uma ermida porque muita gente que a visitou acha que vale a pena visitar essa ermida esplêndida. Só existem porém opiniões de maiorias sobre um pequeno número de coisas. Não assim é de excluir que haja neste mundo livros que ninguém tenha lido, ermidas que ninguém tenha visitado, e restaurantes onde ninguém tenha jantado.
O melhor livro em português sobre ermidas que ninguém viu, livros que ninguém leu e restaurantes em que ninguém pode jantar é o maravilhoso Guia de Portugal, em cinco volumes (e oito tomos). Começou a ser publicado em 1924, por Raul Proença (1884-1941) e muitas dezenas de colaboradores; mas só acabou de ser publicado em 1970; e depois voltou a ser republicado várias vezes, com actualizações que nos previnem de que nem tudo o que existia em 1924 existe ainda. A história editorial prolongada do Guia de Portugal é não obstante responsável por uma parte importante das suas maravilhas.
É certo que alguns passos do livro são desconsoladores por razões de prosa; muitos dos seus autores eram escritores conhecidos, ou queriam ser conhecidos como escritores. Quando deploram num convento “a penosa metamorfose do frontispício, desfeiteando e desfeando consideravelmente a venerável igreja concebida pelo ignoto e magistral Froilaz,” ou nos gabam “o mimo de um jardim na sua monocultura canseirosa,” sentimos vontade de proibir imediatamente o uso de adjectivos. Que mal que se escrevia entre 1924 e 1970! Reescrever o Guia de Portugal sem adjectivos valeria bem um plano de ordenamento florestal.
A prosa não é porém a única ou a principal razão para ler livros em prosa. O Guia de Portugal garante-nos que no fim de “um dos passeios mais singulares que a serra de Tabuaço nos reserva” se consegue avistar a “Igrejinha de S. Pedro das Águias, templo minúsculo de castiça estrutura românica.” Mas com grande probabilidade ninguém a terá avistado desde 1970. É como um grifo, como um electrão, ou como um leopardo: nenhum leitor sensato se sente culpado se depois de acabado o livro não conseguir avistar leopardos na serra de Tabuaço. O Guia serve de guia para a toda a literatura: mostra-nos como se pode ler livros sem exigir experiências em troca.
observador