Coragem de mudar o SNS!

O Serviço Nacional de Saúde (SNS) atravessa um momento decisivo. Com a apresentação de medidas que visam racionalizar e moralizar o atual modelo dos prestadores de serviços médicos no SNS, com particular importância nos serviços de urgência, abre-se finalmente uma oportunidade de romper com um ciclo de adiamentos sucessivos e de iniciar a mudança que o país reclama há demasiado tempo.
Durante décadas, assistimos à proliferação de vínculos laborais precários, que não promoviam a dedicação às instituições nem valorizavam a experiência adquirida. Em vez disso, instalou-se um leilão de preços por hora que promoveu, muitas vezes, a canibalização entre hospitais do próprio SNS. Não era incomum terminar contratos num dia e regressar no seguinte como prestador individual, ou através de empresas, recebendo valores que chegavam a representar o triplo dos recebidos por colegas no topo da carreira.
Esta distorção remuneratória comprometia qualquer tentativa de valorização da dedicação plena ou de reforço da abertura de concursos de progressão na carreira, para os graus de consultor e de graduado sénior. O resultado era previsível: a instabilidade persistia e o SNS perdia capacidade de retenção.
No Serviço que tenho o privilégio de dirigir, com mais de 140 médicos (40 em formação), conseguimos integrar 22 novos especialistas nos últimos três anos e atualmente não recorremos a prestadores externos. Mas sei que esta é uma exceção. Em muitas regiões, a interioridade e a concorrência do setor privado tornam o desafio quase intransponível. Apesar de, muitas vezes, continuarem a trabalhar exclusivamente no SNS, muitos colegas acabavam por rescindir o seu vínculo porque, até agora, sair era financeiramente mais compensador do que ficar.
As novas regras pretendem inverter esta lógica. Especialistas recém-formados que não concorram a vagas no SNS, médicos que recusem horas extraordinárias obrigatórias e clínicos que se tenham desvinculado do SNS nos últimos três anos, ficarão impedidos de prestar serviços à hora. A medida não deve ser vista como punitiva, mas como um passo de coerência em defesa do sistema público.
Valorizar o SNS não passa por perpetuar desigualdades. O SNS precisa de regras claras que compensem quem nele permanece e que devolvam justiça e estabilidade ao sistema.
Participei na Comissão de Redação do Novo Relatório sobre a Carreira Médica em Portugal e não posso deixar de sublinhar que promover carreiras estáveis, não é apenas justo para os profissionais, é também a forma mais eficaz de garantir qualidade e segurança aos doentes.
Precisamos de uma política de saúde que vá além da doença aguda, que valorize o rastreio, o diagnóstico precoce, a otimização clínica da cronicidade e a promoção de estilos de vida saudáveis, e que não se limite a avaliar o desempenho do sistema apenas por indicadores centrados na doença, como o número de consultas, cirurgias ou até de episódios de urgência.
O modelo vigente viveu de figuras messiânicas e de sucessivas promessas de mudança, sem nunca consolidar dados credíveis que sustentassem decisões. Trabalhar em rede exige espírito coletivo e liderança consistente. O caminho é difícil e longo, mas só se fará com passos certos e firmes.
Estas alterações têm um valor simbólico comparável à revisão, recentemente promovida pelo Ministério da Saúde, das redes de referenciação em áreas médicas basilares, como a Obstetrícia, há tanto pedida e sempre adiada. A realidade sociodemográfica do país alterou-se profundamente, a tecnologia evoluiu de forma acelerada, mas continuamos agarrados a ideias passadistas de um sistema concebido para outra época.
É igualmente crucial que, na voragem do quotidiano, não se deixem perder a investigação, a academia e a inovação. O futuro constrói-se hoje e só com centros clínicos e universitários fortes, capazes de interpretar a integração de cuidados com ambição, poderemos crescer, evoluir e oferecer melhores serviços de saúde.
Quando iniciei a minha investigação em educação médica, aprendi cedo que, em ambientes complexos, a liderança é tão essencial como o trabalho em equipa. A melhoria contínua constrói-se avaliando sucessos e fracassos, corrigindo rotas e aprendendo com a experiência.
Por isso, saúdo a determinação de uma ministra da Saúde que reconhece o valor das equipas no terreno e coloca o bem comum acima de cálculos imediatistas. É esse espírito de serviço público que poderá, finalmente, devolver ao SNS a coesão e a credibilidade. É tempo de transformar a coragem em ação e de garantir ao SNS o futuro que os cidadãos e os profissionais merecem.
observador