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Regresso a casa

Regresso a casa

“Descreva-me a sua terra”, pedia-me ele. Eu voltava de comboio à minha terra para o Verão. Trazia um caderno finamente ornamentado que rabiscava pelo caminho. Isto foi antes do fim da caligrafia, quando ainda conseguia escrever à mão. (Lembro-me de outra imagem insistente: a de ter havido uma máquina durante anos no mar, junto da costa. Eu era criança e diziam-me que a máquina lavava a água. A máquina modificava a vista, como a ponta de um iceberg. Com o tempo, porém, a máquina já fazia parte da paisagem. Penso que ninguém tem disto uma memória poética. A mim atormentava-me a imobilidade da máquina perante o esforço da drenagem, que me parecia desmesurado. A máquina no mar daria início à coda balnear de que vivemos ainda a vigência.) Eu ia a caminho de Cascais, embora ainda muito longe. À chegada, subi a rua da estação. Encontrei o senhor Pedro de sempre numa esquina. Não sei se percebeu quem eu era. Aproximou-se de mim, deu uns passos meio tonto, e caiu-me morto nos braços. A sua queda sobre mim foi o mais próximo que estive da minha terra. Como é que isto responde à sua pergunta? Se tento explicar como é a paisagem quando chego a casa, penso logo que chegar a casa não está na paisagem. Poderia parecer que no regresso se transpõe uma fronteira espacial para lá da qual estamos seguros, mas a mera direcção que tomamos pode ser o que nos apazigua. Na estação, os comboios albergam fugitivos. O alívio de chegar a casa prende-se com a alegria inerente à hipótese de nos perdermos, para a qual escorregaríamos se fôssemos outros. Lá, onde não nos perderíamos, é onde podemos perder-nos. Vejo o mar pelo caminho. Ainda não decorei a ordem das estações. A leitura no comboio banaliza o intervalo. Imagino muitas vezes que morri, o comboio retorcido sobre o mar e tudo para trás um fim de tarde em Pompeia — e tudo daí em diante, como se pudesse pensar postumamente. À chegada, vejo passar o louco da vila. Levanta-se de um banco, palmilha as ruas. Os seus gritos, que não assustam, dão à noite uma nota de iminência que sabemos, contudo, inconsequente. O louco deambulando descreve em círculos a vila e, ao fazê-lo, torna-a dramática. Ele não é um adereço da paisagem. Na nossa ausência, é o zelador da existência da vila, que poderia de outro modo evaporar-se. Traz-nos arrumados por categorias, com uma vigilância a que se subtraiu aos poucos a curiosidade. Chegamos enfim a casa quando aqueles que nos poriam em alerta tomam conta de nós. Os que cuidam rendem-se e conquistam os objectos do seu cuidado.“A concentração”, leio em Feuerbach, “é a condição da oração, mas é mais do que uma condição; a oração é ela mesma concentração — o abandono de todas as distracções, de todas as influências exteriores perturbadoras”. Será que o louco se cansa da vila? É triste que o louco não descanse da vila. Perdeu-se no paraíso.

observador

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