Gestora cultural Ilita Patrício abre as portas à arte com o Espaço HPM

Publicada em 29 de Maio de 2025 às 18:53
"Primeiro eu não acreditei, por achar que era demais uma honraria assim, com tanta gente fazendo muito pela arte na cidade. Depois, fiquei extasiada". As palavras são de Ilita Patrício, ao definir a surpresa e realização em receber uma homenagem institucional da Secretaria Municipal da Cultura (SMC) de Porto Alegre durante a cerimônia de entrega do 17º Prêmio Açorianos de Artes Plásticas, no palco do Teatro de Câmara Túlio Piva, na noite de 28 de março deste ano.
"Primeiro eu não acreditei, por achar que era demais uma honraria assim, com tanta gente fazendo muito pela arte na cidade. Depois, fiquei extasiada". As palavras são de Ilita Patrício, ao definir a surpresa e realização em receber uma homenagem institucional da Secretaria Municipal da Cultura (SMC) de Porto Alegre durante a cerimônia de entrega do 17º Prêmio Açorianos de Artes Plásticas, no palco do Teatro de Câmara Túlio Piva, na noite de 28 de março deste ano.
A modéstia é inerente a seu perfil, mas o reconhecimento se justifica. Ao longo das últimas três décadas, a empresária e incentivadora cultural tem contribuído com uma série de realizações nos bastidores do segmento. Trata-se de um engajamento deflagrado na Associação dos Amigos do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Aamargs) e que se expandiu com a criação do Espaço Cultural HPM, instalado desde 2024 no interior de um hotel no Centro Histórico e hoje um dos mais badalados ambientes expositivos na capital gaúcha.
"Com sua tenacidade e sensibilidade, a Ilita foi muito ativa e eficiente na busca de recursos, parcerias e patrocínios para o Margs, graças à sua tenacidade, em um meio no qual as coisas não costumam ser fáceis", enaltece o artista plástico, crítico e curador Paulo Amaral, diretor do Margs em três períodos de 1997 a 2008 e atual titular da Coordenação de Artes Plásticas da SMC. "Estamos falando de uma profissional de grande valor e sensibilidade, inclusive no trato com as pessoas."
Nada mal para uma porto-alegrense cuja ligação aos meios culturais se deu de forma relativamente temporã, mediante alguns saltos decisivos no currículo. Caçula dos três filhos do casal de proprietários de uma pequena fábrica de artefatos de couro no bairro Santa Cecília (eles depois abririam uma loja de elásticos no Centro), ela cursava o 2º ano do Ensino Científico do Colégio Americano quando foi selecionada, em 1967, para uma bolsa de estudos na Holanda.
O programa de intercâmbio da organização norte-americana International Christian Youth Exchange (ICYE) proporcionaria experiências que mudariam sua visão de mundo, aos 17 anos. Acolhida por uma família na cidade de Duiven, Ilita também conheceu Bélgica, Inglaterra, Itália, França e as então Alemanhas Ocidental e Oriental. Ao inglês (com diploma pelo Instituto Cultural Norte-Americano) somou o aprendizado na língua holandesa, trabalhou como atendente de lanchonete e, nas horas vagas, visitava museus e exposições.
A época coincide com seu primeiro contato impactante ao mundo das artes. "Percorri 10 quilômetros de bicicleta até a cidade de Arnhem para conferir uma mostra do holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Ao ver de perto aquelas pinturas de cenas medievais e fantásticas, foi amor à primeira vista. Até porque eu não tinha em Porto Alegre uma vivência teórica ou prática no assunto, exceto por aulas de desenho geométrico no colégio ou cursos de balé e piano, esse último praticado em casa com um instrumento que acabara vendido para os fundos de viagem".
De volta para casa em 1968, após escala de dois meses nos Estados Unidos (o irmão mais velho trabalhava na Embaixada em Washington), a mocinha cosmopolita reatou o namoro com Marco Antônio, acadêmico de Medicina. Concluiu o Científico mediante supletivo, frequentou aulas de violão e passou a lecionar inglês no curso de idiomas Yázigi. Foi aprovada no vestibular para Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), influenciada por leituras e pelo contexto mais igualitário que presenciara na Europa. Seus caminhos voltariam a se cruzar com os da arte somente décadas depois.
Casada desde 1970 e mãe da primeira de suas duas filhas no ano seguinte, Ilita Patrício estagiou na então Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (Febem, hoje Fundação de Atendimento Sócio-Educativo, a Fase) antes de obter o diploma de Serviço Social, em 1973. Primeiro emprego, em dose dupla: a clínica de adolescentes do Hospital Espírita, pela manhã, e o Hospital Psiquiátrico São Pedro, à tarde - na unidade feminina, depois nas alas infantil e de reabilitação profissional, coordenando oficinas multidisciplinares.
O trabalho na segunda instituição oportunizou o contato com abordagens freudianas e jungianas. Dentre as experiências mais marcantes, visitou no Rio de Janeiro o Hospital do Engenho de Dentro, onde a psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) desenvolvia iniciativa pioneira de arte-terapia no tratamento de transtornos mentais. Fora do expediente, o contato com os meios culturais se restringia à condição de espectadora, em visitas a exposições dentro de fora do País, acompanhada do marido.
Seriam necessários 25 anos para que Ilita reabrisse as portas a uma vocação que se logo manifestaria com força total. Aposentada em 1998, uma de suas primeiras atitudes foi matricular-se em um curso de extensão da Pucrs, sobre História da Arte. "Já na primeira aula, fui invadida por uma alegria indescritível", relembra. "A questão teórica muito me atraía, então os quatro semestres de atividades reforçaram a certeza de querer estar ali e de ir além."
O movimento seguinte foi dado em 2000, ao bater o olho em uma nota de jornal. Era o Margs, chamando voluntários para atuação em visitas guiadas. "Eu me apresentei, fui selecionada, recebi um curso de mediação com 20 colegas e logo estava lá, duas tardes por semana, conduzindo o público pelas exposições, sem remuneração mas completamente realizada. Assim foi por quase uma década, até um novo diretor decidir que melhor seria ter universitários na função".

Ilita Patrício morou na Holanda, onde trabalhou como atendente de lanchonete ACERVO PESSOAL ILITA PATRÍCIO/REPRODUÇÃO/JC
Se a arte é feita de ciclos, o mesmo vale para suas instâncias. E as aptidões de Ilita não passaram despercebidas: dois anos mais tarde, o escultor, historiador, crítico e curador Gaudêncio Fidélis a convidou a compor chapa - vitoriosa - para o comando da Associação dos Amigos do Margs. De 2010 a 2023, ela seria tesoureira, presidente (em dois períodos distintos) e vice. Seu nome não demorou a se tornar uma referência em gestão institucional.
"Conquistamos avanços como a inclusão do Museu em verbas da Lei Rouanet", orgulha-se. "Também realizamos concursos para exposição de fotografias no café e no bistrô, além de implementarmos o ciclo de debates Conversas no Museu e o programa de intercâmbio Travessia, entre artistas suíços e gaúchos, além de produzirmos uma série de depoimentos com artistas locais para o acervo audiovisual do Margs."
Gaudêncio Fidélis não poupa elogios: "Foi um privilégio trabalhar com a Ilita, uma pessoa de rara e genuína trajetória de comprometimento e contribuição às artes visuais e ao patrimônio cultural". Em paralelo ao trabalho na Aamargs, ela ampliava o know-how em cursos de história da arte gaúcha, brasileira e internacional, alguns dos quais promovidos pela Fundação Bienal da Mercosul e que a habilitaram a atuar como monitora em diversas edições do evento.
As ligações ativas de Ilita Patrício com a cultura ganharam novas cores ao revelar outra bem-sucedida faceta: a de empresária. Esse vínculo remonta a 1966, quando o marido herdou do pai o palacete no Largo João Amorim de Albuquerque nº 72, a exatos 98 metros do Theatro São Pedro. Adquirido pela família em 1949 e arrendado a um hotel desde meados da década de 1970, o imóvel teve sua devolução requisitada pelo casal de proprietários em 2014, com o plano de dar novos ares ao estabelecimento, a partir de um meticuloso projeto de revitalização.
O potencial havia sido notado pela primogênita Cristine Patrício, formada em hotelaria na Alemanha e que retornara de um período de trabalho no Nordeste brasileiro. "Era prioritária a recuperação do prédio, com boa parte de seus elementos originais preservados, mas também diversos problemas", explica a gestora e sócia. "Foram quatro anos de obras e investimentos, incluindo um financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), curso no Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e apoio de uma consultoria especializada."
Reinaugurado em junho de 2016, dois meses após o falecimento do marido de Ilita, o Hotel Praça da Matriz logo se tornou uma opção charmosa de hospedagem no Centro Histórico, inclusive para atores, diretores e produtores de cinema e teatro - a proximidade ao São Pedro e outros pontos de referência é um dos atrativos. Some-se a isso a eventos como palestras e o layout interno repleto de telas de artistas locais (e que serviu de locação para o curta-metragem Ainda Somos os Mesmos, com Edson Celulari), a combinação estimulou a empresária a avançar no conceito.
"Com nossa ampla rede de contatos nos meios culturais, comentei com o pintor Britto Velho sobre a vontade de utilizar espaços do palacete como uma espécie de galeria de arte, funcionando de forma permanente. Ele achou ótimo e pediu que, se a ideia fosse levada adiante, queria ser o primeiro a expor conosco", conta a proprietária, que tem a segunda filha, Cláudia Patrício, também como sócia - além dos netos Janina e Vinícius na recepção. Uma equipe foi então montada, com parceiros nas áreas de divulgação, marketing, design e expografia, resultando na inauguração do Espaço Cultural HPM, em abril de 2024.

Espaço Cultural HPM foi aberto ao público em abril do ano passado WANDERLEI OLIVEIRA/DIVULGAÇÃO/JC
São três ambientes com iluminação e suportes especialmente preparados. Em destaque, mostras individuais inéditas (com movimentadas vernissagens) do já citado Britto Velho e de Eduardo Vieira da Cunha (pintura), Beatriz Dagnese (desenho), Gilberto Perin (fotografia) e coletivo Maresias. A agenda é complementada pela série de bate-papos Roda de Cultura, aproximando artistas e público - o colunista social Paulo Gasparotto, o historiador Arnoldo Doberstein e a jornalista e guia de turismo Maria Lúcia Badejo também já estiveram entre os protagonistas.
"Trata-se de uma experiência incrível, porque reúne não apenas o pessoal do meio artístico e extrapola uma socialização que muitas vezes fica restrita ao coquetel de abertura", ressalta Gilberto Perin, após dois encontros alusivos à sua exposição, em cartaz até a próxima segunda-feira. "Os participantes podem conhecer um pouco mais sobre artista e obra, bem como dividir suas impressões, algumas surpreendentes, compartilhadas e repercutidas nas redes sociais. Isso faz com que a mostra extrapole os limites da apreciação do trabalho em si."
Ao completar um ano, em abril deste ano, o local teve sua relevância consolidada pela inclusão da mostra Pintura à Deriva, de Eduardo Vieira da Cunha, no programa Portas Para a Arte, realizado em paralelo ao roteiro de museus e outras instituições integradas à Bienal do Mercosul. "Espaços alternativos como o HPM são plataformas indispensáveis para a vitalidade do meio artístico, por ampliarem a visibilidade de eventos que a institucionalidade normalmente não apoiaria", dimensiona Gaudêncio Fidélis, ex-diretor do Margs.
"Ilita é uma ótima empreendedora, que coloca o coração em tudo o que faz, tanto no projeto do Hotel quanto no espaço cultural que ela idealizou, conseguindo unir patrimônio histórico e artes plásticas, duas de suas grandes paixões", sublinha a filha Cláudia, que concilia a parceira no empreendimento com a profissão de médica veterinária. A mãe dá a pincelada final: "Ainda temos um longo caminho a percorrer e outras novidades vêm por aí, muito em breve. Por enquanto, é surpresa".
Inaugurado como residência em 1928, o palacete que hoje abriga o Espaço HPM tem sua origem intimamente ligada à trajetória de seu primeiro ocupante: Luiz Alves de Castro, dono do Clube dos Caçadores (1914-1938), localizado na rua Andrade Neves e enaltecido por cronistas como o mais famoso cabaré-cassino de Porto Alegre. Figura controversa, 'Capitão Lulu' ostentou com o imóvel a fortuna amealhada em roletas e carteados, bem como a busca permanente por legitimação social - a construção em terreno próximo às sedes das principais instâncias do poder gaúcho diz muito sobre isso.
O engenheiro teuto-gaúcho Alfred Haessler projetou quatro andares com subsolo, pátio interno, diversos cômodos, garagem e sistema francês para calefação de água, além de mármores, azulejos, estatuária e outros itens decorativos, especialmente encomendados na Europa. Mas Lulu não teve muito tempo para usufruir de tamanho requinte. Com a Revolução de 1930 (que fez do governador gaúcho Getúlio Vargas presidente da República), migrou para o Rio de Janeiro, onde se tornaria sócio do Cassino da Urca e dono de diversos empreendimentos do gênero.
Com o decreto federal que em 1946 proibiu de vez os jogos de azar, ele desmantelou seu patrimônio na capital gaúcha e o palacete junto à Praça da Matriz - até então alugado a terceiros - trocou de mãos até ser adquirido em 1949 pelo futuro sogro de Ilita Patrício. Hoje um dos poucos endereços particulares remanescentes no entorno da Praça da Matriz, o prédio está inventariado como de interesse histórico pelo Município e inserido no programa Monumenta, voltado à recuperação de fachada, cobertura e estrutura elétrica.
* Marcello Campos é formado em Jornalismo, Publicidade & Propaganda (ambas pela PUCRS) e Artes Plásticas (UFRGS). Tem seis livros publicados, incluindo as biografias de Lupicínio Rodrigues, do Conjunto Melódico Norberto Baldauf e do garçom-advogado Dinarte Valentini (Bar do Beto). Há quase duas décadas, dedica-se ao resgate de fatos, lugares e personagens porto-alegrenses. Contato: [email protected].
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