Tânia Ganho e o homem como lobo da mulher

No seu quarto romance, a romancista e (excelente) tradutora Tânia Ganho narra a história de Fedra, uma professora universitária e antropóloga forense que se dedica a investigar crimes sexuais na dark web, que se cruza com as histórias da sua mãe, Amélia, da sua irmã Helena, da sua sobrinha adolescente Leonor e de Stefan, um fotojornalista alemão que se muda para Portugal e aqui cria um santuário de lobos.
Seria imediato acharmos que o livro orbita em torno de uma denúncia da violência sexual, uma vez que, à exceção de Amélia, todas as vidas aqui descritas foram devassadas, enquanto testemunhas ou vítimas, por uma realidade cada vez mais grotesca e omnipresente. No entanto, parece-me que não será aí que encontramos a maior virtude de Lobos.
Se na nossa vida de leitores nos lembramos sobretudo das personagens que conhecemos nos nossos romances favoritos, são os narradores o sustento das melhores narrativas. Se os grandes livros se alimentam de grandes personagens, os grandes escritores alimentam-se de grandes narradores. Se as personagens embelezam, os narradores impedem que a estrutura colapse sobre si mesma. E é o narrador (ou narradora, para o caso é indiferente) a maior virtude do romance de Lobos.
Ao longo das mais de trezentas páginas desta história (onde por vezes, e esse será o principal defeito que aqui encontramos, sentimos a narrativa pedalar em seco), Tânia Ganho constrói um narrador que subtilmente, de forma quase invisível, se vai moldando à história que conta, assumindo subtilmente as dores das personagens, sem sobre elas se pronunciar, mantendo uma coerência interna assente na plasticidade necessária para nos revelar a interioridade de personagens tão diferentes, unindo-se a cada uma delas sem nunca abdicar da neutralidade e, se assim podemos defini-la, da sua objetividade. Por entre os conflitos familiares silenciosos de uma família que teima em recusar a confrontação direta, o narrador mostra as razões de cada lado, deixando ao leitor a tarefa de as ponderar, como deve acontecer na grande literatura. E se isso nos parece pouco é só porque nos desabituámos a avaliar a literatura pela robustez de quem a conta.
Desse ponto de vista, talvez não haja episódio maior em toda a história do que o momento em que Stefan finalmente explode e ataca o que entende como a fragilidade autocomplacente característica dos adolescentes, no caso encarnada em Leonor (“A ligeireza com que toda a gente anuncia que tem stress pós-traumático, sem noção do que é o verdadeiro trauma. De repente, a fragilidade parece uma virtude a exibir em conversas (…) Arejam-se os complexos à janela, estendem-se os traumas na corda da roupa para todos verem. Sabem lá o que é stress pós-traumático. Ele sabe, ele viu.” (p. 293)).
Também seria intuitivo assumirmos, até pelo título, que as personagens orbitam em torno de uma ideia de predação, julgarmos que o romance de Tânia Ganho seria uma atualização da velha ideia do homo homini lupus, ou seja, de que o homem será o lobo do homem, ou, mais especificamente, o lobo da mulher. Será decerto uma ideia importante, como se percebe pelo número substancial de iterações de abusos, ou no episódio, a meu ver central (ainda que passageiro), do idoso num lar, já esquecido de quem é e de quem foi, dentro do qual continua a vir ao de cima o que poderíamos designar de uma masculinidade assertiva e impositiva, levantando-nos a pergunta de se isso seria um último resquício de quem este velho fora ou a emergência do que nos constituiu essencialmente.
Mas dizia eu, ainda que tudo isso seja inegavelmente relevante para a história, talvez o centro do romance seja uma ideia de cancro, ou melhor, de uma doença interna que se vai alastrando até engolir as personagens, e que vemos concretizada no cancro da loba Estrela (cuja ferida parece evocar as cicatrizes autoinfligidas por Leonor), no Alzheimer de Amélia, no nude de Leonor, na infidelidade de Helena, no problema de próstata de Stefan, na dessensibilização e falta de empatia de Stefan, no medo da doença de Fedra, no trabalho de Fedra, nas recordações subconscientes de Fedra e, sobretudo, na resistência a uma ideia de dependência e intimidade de Fedra.
Por fim, uma análise de Lobos não ficaria concluída sem analisarmos a personagem mais interessante da história: a irmã de Fedra, Helena. Fedra ocupa o centro do livro, roubando a parentalidade de Leonor à irmã e constituindo o exemplo paradigmático de relações amorosas que depois se repetem nas vidas da sobrinha e da irmã (o triângulo amoroso protagonizado por Helena parece reproduzir o anteriormente vivido entre Fedra, Stefan e Vasco, tal como o interesse de Leonor por Xavier reproduzirá o de Fedra por Stefan). Contudo, é o ciúme de Helena que dá vida à história. O ciúme que vemos espreitar subreticiamente por a mãe, professora de literatura, lhe ter dado um nome tão banal, o ciúme da vida aventureira e despreocupada da irmã, o ciúme da intimidade entre Fedra e Leonor, o ciúme por projetar em cada movimento semiconsciente de Amélia uma condenação à sua vida, o ciúme por intuir que o pai amava mais a irmã. Ciúmes que a conduziriam para os braços de Vítor, sendo curioso notar que é a frieza com que Helena assinala as virtudes inegáveis de Carlos que nos revela que esse casamento acabou.
Mais do que uma certa masculinidade promovida pela internet, Tânia Ganho retrata, em Lobos, o que já existia muito antes das primeiras manifestações de acne em Zuckerberg. E ainda bem.
observador