Éme em bares, biqueirões e becos

No pequeno e lídimo bairro de editoras independentes deste século é a Cafetra Records a que está floreando e dá belos pomos durante a estação. Sallim publicou versos e o novo álbum de Iguanas já se mostrou ao vivo; Éme continua a fazer novas canções que toca ao vivo. Essa editora é, em certo sentido, filial de B Fachada e da sua grande alcova de liberdade e reinvenção do cânone do folclore, e dos limites do audível no popular português – em sons e em letras. Continuou um caminho que estava provavelmente deserto depois de José Afonso – descontando o trabalho de Rui Reininho e dos Diabo na Cruz, onde nidificou, e as excepções que vinham detrás como Sérgio Godinho. Trazer a linguagem da rua para as canções. Nos anos 80 gerou-se um certo idealismo revivalista, algum excelente como no caso de Por este rio acima (1982), e outro menos interessante, como algumas adaptações de poemas de Antero. Se Pedro Homem de Mello é o autor da máxima raramente citada “o que é preciso é subir ao povo” não sei dizer, mas que certamente se tratou de um lapso freudiano do autor da frase, seja quem for, exibindo certas ideias-ideias sobre ser povo, cá isso eu sei.
A Cafetra tem porta para a rua aberta em 2008 por gente nascida no final de 80 e início de 90. Produtor dos primeiros discos de Éme e Maria Reis, o prolongamento do seu trabalho teve sempre veios autónomos – também aqui como no caso de Zeca Afonso. Mais intuitivos e crus, menos intrigantes e menos ambiciosos, mas nem por isso desprezíveis. Assim, o verdadeiro experimental foi B Fachada. Explique-se: experimental é o adjectivo-chapéu que em arte se usa dar ao estilo novo que, dada a sua dissemelhança com os predecessores, poderá durar e ser original ou não durar. Por exemplo, sofreu do mesmo adjectivo o gigante escritor (por coincidência ou ironia era baixo e feio) William Faulkner quando surgiu mordendo com seu estilo as sete-saias das crónicas condescendências críticas.
Estou convencido que Éme é um autor excelente que não tem tido suficiente eco. Disco Tinto saiu há um ano. Éme está na casa de pasto e compadece-se dos bêbados, dos mortos de cansaço. Sonha com uma estalagem em que quem não tiver fica a dever e só paga quem quiser. Enternece-se como O’Neill, que bebia-comia vorazmente e amorava este género de lugares, previstos para fechar no novo século ainda antes do prognóstico desaparecimento das livrarias, dos sapateiros, e de Gabriel Alves. E ri-se sobre o que de si mesmo disse: eu era tipo uma anedota sobre um idiota que se achava genial. Éme casa muito bem o cómico e o trágico.
O álbum não é um objecto circular. (A isto se costuma chamar um disco conceptual mas a expressão é tola – de qualquer modo não o é). “O Actor” e “Fã nº2” formam um par sobre o fantasma do sucesso. A estética de Éme é sintetizada numa faixa extra-disco: evocação de Fernando Mamede disponível no YouTube (Éme e Moxila, “Estocolmo 1984”):
“Nem por isso esta história acaba com a glória de um herói nacional
Foi falhar que me tornou especial”
“Ratitos” e “O Filho Mais Velho do Embaixador” são narrativas morais sobre a proximidade da cave e do rés-do chão, do cava e do palheto. Uma em fábula, outra em ferida. “Dores Laborais” é um clássico sobre dever e lazer.
Éme não dá importância aos decassílabos. A dicção é particularmente lenta, e a tónica é cantada quase sempre na penúltima sílaba. Tem a cara de Cesário Verde, e não apenas. Tal como Verde em Cesário soa a característica jovial, também Éme faz algum efeito em João Marcelo. Parece empenhado em descrever a vida da cidade com olho para as figuras da praça, como “O Sentimento de Um Ocidental”. Algumas das palavras preferidas do artista são invulgares em canções: excelente, espelunca, cotas, sozinho, bolo. Há rimas impraticáveis, o que sói ser sinal de boa poesia: “igualzinho” rima com “sido”, “branca” com “alavanca” em “O Actor”. “mentol” rima com “mole” em “Fã nº2”, “vício” com “tiro” em “Branco Maduro”, “atende” com “quente”, “mercê” com “maré”, “dentro” com “vento” em “Chama chama”. Além disso, de novo em “O Actor”, mostra-nos o caminho fácil e segue o difícil. Cala a última palavra da estrofe, que seria o cliché “Portugal”, que faria de uma homenagem a um músico esquecido um panfleto mensageiro.
Supera a influência de B Fachada com o estilo próprio. B Fachada nomeia os ódios, os temas, os tópicos e rasga, metaforiza. Com Éme, os tópicos são já esvaziados da sua carga simbólica. A sua poesia é mais contingente. O mentor faz-se em várias personagens, Éme traz a angústia para o chão que pisa.Por exemplo, “ter um grande vício é quase igual a ter fé/ um é um tiro no escuro e outro é um tiro no pé”. O exercício de crítica e transgressão foi o amor no caso de B, e terá sido o álcool na pele de Éme. O excesso, o desequilíbrio platónico, e o princípio de realidade em ambos. Mas enquanto o princípio de realidade em Fachada se faz na vida, o de Éme faz-se também na canção. A sua observação de eflúvios não é apenas vínica, está cheia de ricas imagens humanas, vilões simpáticos, profissões, solidão. As aldeias dentro da cidade imensa, as teias de aranha no tecto de cortiça. É fácil rever a linha norte-americana que se lê em John Fante, Erich Maria Remarque, J. D. Salinger. Jovens imberbes logo baleados. Havia uma verdade que está a ser borrada pela vida. A auto-ironia de Éme joga com o primeiro livro de João Pedro Vala, Grande Turismo (2022), embora esta seja benigna e a de Éme diabólica, esta mais espontânea e a de Vala mais intelectualizada. E nos concertos, uma labareda na sua expressão empenhada em ardente sudação que canta com a raiva toda, com o amor todo, como um grande poeta romântico. Volta à pavidez no fim. A inteireza de Éme não tem retórica nem encenação. Imagina onde deambulou verdemente, como em “Purgatório”. Os álbuns “Domingo à Tarde” (2017) e “Éme e Moxila” (2022), díspares objectos a solo e a duo, devem ser consumidos logo após este Disco Tinto – após anos parcos e demasiados de estágio em casas escuras e feitas de carvalho. Mas primeiro, é cautelar que se afeiçoe o gosto a vinhos feitos de uva.
Jornal Sol