‘Isto matará aquilo’. A vingança da arquitetura sobre o livro

Ainda que se fale nas centenas de milhares de livros que são vendidos a cada ano na feira, todos os estudos confirmam os índices de leitura vergonhosos. Comprar livros é fácil, mas ler exige tempo e tornou-se por isso um luxo que poucos se podem permitir. ‘Já hoje, a língua, e sobretudo a que os jovens lêem, se reduz à legenda das imagens’, alertava George Steiner
Que estranha arte é esta, que efeito mágico poderia dispor uma mente a evadir-se em relação a si mesma, às circunstâncias que nos definem e à época, para se deter sobre os elementos da vida dos outros? Os livros podem estender-nos a linha, introduzir variáveis extraordinárias, vozes que ressoam fora de campo, ecos implausíveis, dar-nos elementos que nos faltam, expandir a conversa, e se levarmos em conta o que nos diz o crítico cultural Neil Postman, a cultura não é mais que isso, a corporação das tantas conversas que mantemos, conduzidas segundo uma variedade de modos simbólicos e através de diferentes meios. Naquele seu tomo decisivo da análise da nossa época, publicado nos anos oitenta – Amusing Ourselves to Death –, Postman assinalava como as notícias de cada dia não passavam de um figmento da nossa imaginação tecnológica, num período em que vamos cosendo com uma dificuldade cada vez maior apenas fragmentos de ocorrências que nos são relatadas a partir de todos os recantos do mundo. Ora, volvidas quatro décadas, o prefácio de Postman àquele livro persiste como uma das mais poderosas lições escatológicas do nosso tempo, uma profecia cujo vigor nos atinge hoje com toda a sua escandalosa legibilidade. Nesse texto, ele comparava a distopia de Orwell (1984) sobre a repressão fascista com a sociedade trivial e sem substância imaginada por Aldous Huxley no seu romance de 1932, Admirável Mundo Novo. «Estávamos de olhos postos em 1984. Quando o ano chegou e a profecia não se concretizou, os americanos mais ponderados cantaram baixinho em louvor de si próprios. As raízes da democracia liberal tinham resistido. Onde quer que o terror houvesse ganho expressão, nós, pelo menos, fôramos poupados aos pesadelos orwellianos. Mas esquecemo-nos de que, ao lado da visão sombria de Orwell, existia outra – um pouco mais antiga, um pouco menos conhecida, igualmente arrepiante: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley».
Porque não vale a pena substituir as suas palavras por uma paráfrase que, por mais esforçada, acabaria sempre por sujar a limpidez e a firmeza da expressão original, preferimos prosseguir com a citação direta das palavras de Postman: «Contrariamente à crença comum, mesmo entre os mais instruídos, Huxley e Orwell não profetizaram algo semelhante. Orwell alertava para o perigo de sermos dominados por uma opressão imposta do exterior. Já na visão de Huxley, não era necessário nenhum Grande Irmão para privar as pessoas da sua autonomia, maturidade e memória. De acordo com a sua previsão, as pessoas acabariam por amar a opressão a que estavam submetidas, e adorar as tecnologias que anulam a sua capacidade de pensar.
O que Orwell temia eram aqueles que proibiriam os livros. O que Huxley temia era que não houvesse sequer motivo para o fazer, pois não existiria já quem os quisesse ler. Orwell receava quem nos retirasse o acesso à informação. Huxley temia quem nos desse tanta informação que nos reduzisse à passividade e ao puro egoísmo. Orwell temia que a verdade nos fosse escondida. Huxley, que se afogasse num mar de irrelevâncias. Orwell receava que nos tornássemos uma cultura cativa. Huxley receava que nos tornássemos uma cultura frívola».
Como Huxley escreveu em Regresso ao Admirável Mundo Novo, os defensores das liberdades civis e os racionalistas – sempre atentos no esforço de se oporem à tirania – «não levaram em conta o apetite quase infinito do ser humano por distrações». «Em 1984, acrescentava Huxley, as pessoas são controladas através da dor. Em Admirável Mundo Novo, são controladas através do prazer. Em suma, Orwell temia que aquilo que odiamos nos destruísse. Huxley temia que fosse aquilo que amamos a fazê-lo».
As artes da atenção
É certo, como alguém disse, que «se o futuro é futuro, será sempre inesperado». E até pode ser isso o que permite estabelecer uma ‘qualidade’ na apreciação que fazemos do futuro, de tal modo que se tornou banal notar como antes o futuro parecia melhor, causava fascínio e até um desejo de levarmos vidas banais pelo simples prazer de acompanhar os episódios seguintes. A perda de qualidade do futuro gera uma sensação de náusea, uma vez que cada manhã despertamos e as notícias parecem ter caído num movimento elíptico e desgastante. Em vez de um perpétuo enredo surpreendente, acordamos para uma trama repetitiva, cada vez mais exigente e sórdida, rude e imoral. E neste quadro, ler um livro é para muitos um luxo espantoso, encontrar aquele ambiente sossegado e intenso de modo a envolver-se sem deixar que nada nos interrompa, auferir do privilégio das artes da atenção concentrada, aquilo que Malebranche definia como a «piedade natural da alma», parece ser uma pequena utopia até para muitos daqueles que antes conseguiam retirar mais dos livros. Num certo sentido, o tempo dos livros parece ter sido expulso, ter-se tornado impraticável, por requerer de nós um grau de reclusão, silêncio e dedicação que encontra inúmeros obstáculos na vida que levamos. «É uma banalidade comprová-lo», assinalava George Steiner, «estas artes, nos nossos dias sofreram um processo alargado de erosão; tornaram-se uma ‘profissão’ universitária cada vez mais especializada. Mais de oitenta por cento dos adolescentes americanos não sabem ler em silêncio; há sempre um pano de fundo de música, de volume maior ou menor. A intimidade, a solidão que permite um encontro em profundidade entre o texto e a sua receção, entre a letra e o espírito, é hoje uma singularidade excêntrica, psicológica e socialmente suspeita. Inútil determo-nos sobre a derrocada do nosso ensino secundário, o seu desprezo pela aprendizagem clássica, pelo que se aprende de cor. Doravante, uma espécie de amnésia planificada prevalece nas nossas escolas».
Das letras de pedra às letras de chumbo
E, contudo, por estes dias decorre numa zona privilegiada da capital aquele evento de celebração cheio de uma força moralizante, e que ano após ano insiste em divulgar números que parecem exprimir um fenómeno de adesão e inebriamento maciço pelos livros, pela leitura. Podemos já antever que os números de visitantes da Feira do Livro de Lisboa voltarão a superar ou que estarão, pelo menos, em linha, com os do ano passado. Fala-se sempre em cerca de um milhão de pessoas que durante três semanas se passeiam nesta espécie de centro comercial a céu aberto, e num evento que promove um fabuloso ludíbrio numa altura em que as livrarias são expulsas do centro das cidades devido à especulação imobiliária. Ainda que se fale nas centenas de milhares de livros que são vendidos a cada ano na feira, todos os estudos confirmam os índices de leitura vergonhosos, sendo cada vez mais difícil engolir o constante recital de propaganda daquela instituição, capturada pelos grandes grupos do setor editorial e livreiro. E se pensarmos que cerca de 50% do total das vendas de livros ocorrem no período que antecede o Natal, verificamos que este é um setor cada vez mais sazonal, e em que todo o enredo promocional só serve para gerar distorções insanáveis, de tal modo que nas semanas que antecedem este período das feiras as livrarias já sabem que, ou se mudam para ali, e pagam uma segunda renda, ou mais vale meter férias. No fundo, as estruturas independentes são coagidas a marcar presença, mas sempre numa relação que vem ilustrar e mapear a sua marginalidade ostensiva face aos grupos capazes de criar pavilhões autónomos, autênticos bazares que desfeiam o padrão, e anulam a perspetiva de um espaço de encontro harmonioso, em que prevaleça uma relação horizontal entre leitores, autores, livreiros e editores. É uma espécie de vingança em que a disposição do espaço volta a impor-se face às páginas de um livro, qualquer que este seja. ‘Ceci tuera cela’ (’Isto matará aquilo’), é a frase que sai da boca de Claude Frollo, o arcediago de Notre-Dame de Paris ao abrir a janela do claustro, pondo os olhos sobre a catedral parisiense e voltando depois o olhar para o livro que tem aberto sobre a mesa. Foi assim que Victor Hugo profetizou, no clássico de 1831, a forma como a imponência da arquitetura seria destronada a favor da profusão de possibilidades encerrada no livro. Às letras de pedra sucediam as letras de chumbo. Hugo explicava, assim, como a revolução de Gutenberg iria esvaziar e aniquilar a importância das antigas obras de arte e da arquitetura, que eram os ‘livros da humanidade’ antes de a palavra impressa transformar o património das gerações em algo indestrutível – precisamente por se tratar de um instrumento simples, leve e infinito. Os novos monumentos, de futuro, não seriam já templos, igrejas ou pirâmides, mas as grandes obras literárias. E é nessa perspetiva que aquele livro foi escrito, com a ambição de se tornar um edifício imune à ruína. «Quando comparada com o pensamento que se faz livro e ao qual basta um pouco de papel, um pouco de tinta e uma pena, como espantar-se que a arquitetura humana tenha abandonado a arquitetura pela imprensa?». Não é que as tais ‘Bíblias de pedra’ tenham desaparecido, mas pareciam ter sido relegadas para uma posição secundária no final da Idade Média. Assim, se até ao século XV, a arquitetura fora o principal registo da humanidade, e até ali não surgira no mundo uma única ideia minimamente complexa que não tenha sido transformada em edifício, de modo que todas as noções que cativaram o imaginário popular, bem como os valores e dogmas religiosos, tiveram os seus monumentos, procurando perpetuar-se, de súbito aparecia o livro, que se podia facilmente destruído, já não dependia do esforço das cópias manuscritas, mas podia ser impresso em grandes números, reproduzindo-se e com ele todo esse ‘formigueiro de inteligências’, essa «colmeia onde todas as imaginações, essas abelhas douradas, chegam com o seu mel»..
O maior dos crimes
Por mais que se diga que é frágil um livro, e que um edifício é um livro infinitamente mais sólido, duradouro e resistente, e mesmo se demolir a palavra edificada só é possível num momento revolucionário, o livro vinha oferecer ao pensamento humano não apenas um meio de se perpetuar num formato mais simples e acessível, mas vinha cativá-lo para uma relação de intensidade com a linguagem bem mais profunda, permitindo-lhe escavar nela passagens cada vez mais estreitas, toda uma rede subterrânea, um efeito de contaminação bem mais discreto, às vezes secreto, tão mais perigoso pois, «enquanto um texto sobrevive, algures à face da terra, ainda que num silêncio que nada vem quebrar, continua suscetível de ressurreição», lembra Steiner. «Pode esperar séculos até despertar um eco vivificador». Mas eis que a nossa Feira do Livro nos tem permitido ver a cada ano tomar forma os imperativos de concentração do mercado, e, deste modo, os livros veem-se subitamente desqualificados, num momento em que as vendas servem precisamente para esconder o verdadeiro crime contra a literatura, esse que por ser de algum modo oculto, se apropria de todos os privilégios e apoios para nos deixar cada vez mais impotentes. E esse crime, como aponta Joseph Brodksy é a não leitura dos livros. «Esse crime, uma pessoa paga-o com toda a sua vida; se o criminoso é uma nação, paga-o com a sua história». Condenamos a perseguição de escritores, os atos de censura, a destruição dos livros pelo fogo, mas não chega, «somos impotentes perante o pior dos crimes: a não leitura dos livros». Numa esclarecedora nota de introdução à antologia Paisagem com Inundação, o tradutor, Carlos Leite, oferecia-nos uma perspetiva bastante clara da leitura destas tensões por parte do poeta russo. «A atomização crescente da sociedade moderna, a redução das pessoas a zeros insignificantes, a nulificação dos destinos individuais massificados poderão, apesar de tudo, constituir um terreno propício para a emergência de mais consciências individuais? Sim, apesar de tudo. Para o mundo talvez seja tarde, mas para o indivíduo – porque a linguagem, ou seja, a arte, ou seja, a literatura é o terreno próprio da sua liberdade – existe sempre a possibilidade de se furtar ao ‘denominador comum’ e ascender ao ‘numerador’ da fração que representa o mundo, em direção à ‘autonomia, em direção à privacidade’. ‘Independentemente da entidade a cuja imagem tenhamos sido criados, […] para o ser humano não existe outro futuro que não o enunciado pela arte. Doutra maneira, o que nos espera é o passado – o passado político, em primeiro lugar, com todos os seus entretenimentos das políticas de massas’. Por outro lado, o bem-estar material geral duma sociedade não é garantia de mais liberdade, como sabemos, porque não é sinónimo de mais dignidade».
‘Os livros não têm pressa’
Assim, e, no limite, agora que o livro vem perdendo a sua influência ou preponderância enquanto suporte para os efeitos da socialização da cultura, e se através dos novos meios de comunicação, e das ferramentas de inteligência artificial que se especializam em ler obras e facultar de imediato resumos, todo esse enredo de subterfúgios para nos furtarmos ao confronto direto com as grandes obras literárias, talvez o livro possa persistir como uma última instância, um último recurso do lado daqueles que são tomado de uma imensa náusea e se enchem de suspeitas face às distrações para as quais o quotidiano nos empurra, toda essa trama trivial e sem substância, que exprime as reservas das antigas religiões face à imagem, a sua interdição e iconoclastia, compreendendo como a imagem, nas suas formas variáveis e indefinidamente reprodutíveis, viria a destituir a consciência no futuro. «Já hoje, a língua, e sobretudo a que os jovens lêem, se reduz à legenda das imagens», alertava Steiner. Caberia, assim, a uns quantos rememoradores radicais, cultores deste objeto vivo, «salvar o que subsiste deste mundo despedaçado para disso tirar o melhor partido» , como escreveu Walter Benjamin. O próprio engodo da Inteligência Artificial passa por nos libertar do efeito de concentração profunda e destilação dos saberes que só se adquirem arduamente, submetendo tudo a um processamento das zonas mais densas em lugares comuns, fórmulas simplificadas que acabam por esvaziar todo o sentido. Mas isto mesmo nos lembra como a cultura é precisamente o que resta, quando tudo foi esquecido, e obriga constantemente a um longo processo de seleção e de filtragem, mas também de resgate e de resistência face às súmulas que trocam obras-primas pela tibieza das ideias feitas que empurram cada vez mais a opinião pública para as afetações próprias da redundância e da estupidez. A par do aperfeiçoamento técnico que leva Umberto Eco a dizer que o livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura, objetos que, uma vez inventados, não se pode já fazer algo melhor, no que toca ao objeto-livro este diz-nos logo a que distância estamos das possibilidades que nos abre, e se estamos cheios de pressa, ficamos simplesmente impossibilitados de ler. «Os livros não têm pressa», vinca Steiner. «Um ato de criação não é apressado; lê-nos, privilegia-nos infinitamente». Tudo aquilo que surge como um impedimento à leitura, na verdade, impõe-se como um obstáculo nessa abertura ao infinito, trabalhando para reduzir o futuro a algo absolutamente previsível, ou seja, a dar cabo do elemento inesperado, matar o futuro. Em sentido oposto em vez de meras sugestões de leitura, vimos destacar alguns dos mais singulares e incitantes leitores da nossa modernidade.
Jornal Sol