Selecione o idioma

Portuguese

Down Icon

Selecione o país

Portugal

Down Icon

Rui Mendes, o "filho disciplinado e trabalhador"

Rui Mendes, o "filho disciplinado e trabalhador"

O palco mais emblemático do futebol português é, ao mesmo tempo, aquele onde aconteceu um dos episódios mais negros. Essa antítese tem uma data que será eterna e que ficou marcada pelas piores razões. Estávamos a 18 de maio de 1996, numa tarde de festa que acabou em chuva. As horas que antecederam mais um dérbi lisboeta foram marcadas pela festa em redor do Estádio Nacional, mas esse espírito de boa disposição e fair play acabou por ficar pela mata. Tudo começou a descambar nos primeiros minutos da partida e adensou-se depois de Mauro Airez inaugurar o marcador. No momento dos festejos encarnados, um adepto disparou um very light que viajou do topo Sul ao Norte em poucos segundos e atingiu Rui Mendes, adepto verde e branco que viria a morrer pouco depois.

O bilhete da final de 1996 custou seis mil escudos e encontra-se exposto no Núcleo do Sporting da Mealhada

MARIA JOÃO GALA/OBSERVADOR

O jogo prosseguiu enquanto as equipas médicas tentavam retirar o adepto da bancada, ainda com vida, e só ao intervalo, quando João Vieira Pinto já tinha dilatado a vantagem da equipa de Mário Wilson, é que as autoridades policiais se reuniram de emergência com Jorge Sampaio, Presidente da República, Gilberto Madaíl, presidente da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), José Roquette, presidente do Sporting, e Manuel Damásio, presidente do Benfica. O resultado dessa reunião foi o de terminar o jogo – que chegou ao fim com o triunfo dos encarnados por 3-1 –, de entregar o troféu noutra ocasião e retirar do Jamor os adeptos de cada clube de cada vez, com quase uma hora diferença para evitar confrontos. Agora, 29 anos e sete dias depois, Benfica e Sporting vão voltar a medir forças no Estádio Nacional.

Sula, 29 anos depois: familiares partilham “sentimento que pesa muito” e esperam que “tudo corra bem” no domingo

Este episódio teve impacto um pouco por todo o país, mas foi bem junto à fronteira geográfica que delimita os distritos de Aveiro e Viseu que se sentiu de forma particular. Foi em Sula, uma pequena localidade da freguesia de Trezoi, no concelho de Mortágua e do lado viseense da fronteira, que Rui Mendes cresceu e vivia com os pais, à data dos acontecimentos. Quase três décadas depois, a força do tempo começa a fazer-se sentir. De forma natural, a população envelheceu, alguns partiram e outros regressaram à terra onde cresceram, mas há uma coisa que não mudou ao longo dos últimos 29 anos: a memória que Rui Mendes deixou na sua terra. Pela manhã, o movimento na aldeia é quase nulo e o silêncio é constante, desaparecendo, a espaços, quando os tratores começam a carburar para mais um dia no campo ou quando um casal de peixeiros aparece para vender peixe fresco aos moradores. Ainda que a mercadoria piscícola chegue a Sula apenas uma vez por semana, só um casal se aproxima para comprar carapaus e mais um par de variedades.

Próximo daquele local, apelidado de “planície” por quem ali mora, encontram-se dois familiares de Rui Mendes. “Não é uma coisa má, mas traz sempre recordações e são recordações tristes. Às vezes, quanto mais a gente fala, pior é. Até me estou a arrepiar [mostra o braço]. Isso traz-nos grandes tristezas. Más recordações… é isso mesmo. É um bocado complicado, não há palavras. É um sentimento que pesa muito. Ainda agora fez 29 anos… Lembramo-nos todos os dias. Não há palavras, nós sofremos sempre toda a vida”, revelam. A mensagem de dor e consternação é partilhada um pouco por toda a família, que poucas palavras tem para explicar o sofrimento ao longo das últimas três décadas.

O peixe fresco chega a Sula todas as quarta-feiras antes da hora de almoço

MARIA JOÃO GALA/OBSERVADOR

“Nem o pior inimigo iria dizer mal dele numa situação destas. Foi uma situação que tocou o país pelas circunstâncias em que aconteceu. Foi um bocado a lotaria da morte, da desgraça. Isto foi contrariar a lei da vida… Se o destino existe… Foi marcante e continua a ser. Quando se lembra da Taça de Portugal e do dia 18 de maio, é uma data que traz memórias a toda a gente”, assume, por sua vez, um primo de Rui Mendes. Questionado sobre o jogo deste domingo, só espera “que tudo corra bem”. “É uma festa e no final só há um vencedor. Esse é que é o grande objetivo, que tudo corra bem”, partilhou com o Observador. Em Sula, a posição é quase extensível a toda a população, que prefere resguardar-se ao invés de reviver sentimentos do passado que continuam bastante presentes.

Apesar de ter pouco mais de 30 habitações, a aldeia está quase deserta ao longo do dia e é apenas no restaurante Orlando, localizado à entrada de Sula, e na Associação Desportiva, Cultural e Recreativa de Sula que se vislumbra algum movimento. Ponto assente? Os proprietários dos dois estabelecimentos pouco se lembram de Rui Mendes, dado que, em 1996, viviam longe da aldeia. No caso de António Costa, que se apresenta ao Observador como tendo o nome “igual ao do ex-primeiro-ministro”, a sua vida passava por Coimbra, para onde se mudou poucos anos depois de Rui Mendes ter nascido, em 1960. “Não estava cá. Convivi pouco com ele. Só o conheci em pequeno. Na altura estava em Coimbra e ouvi pela rádio. Pela descrição e o nome descobri quem era. Lembro-me de tudo porque o Rui morreu a um sábado, o funeral foi a uma segunda-feira e o meu pai morreu na terça. São coincidências…“, lamentou o proprietário da associação criada para dinamizar a localidade.

A ADCR Sula, à esquerda, localiza-se no centro da aldeia, junto à capela, à fonte e ao local onde que alberga as festividades locais

MARIA JOÃO GALA/OBSERVADOR

Três quilómetros, várias subidas e descidas e algumas curvas depois, encontra-se a freguesia do Luso que, apesar de já pertencer ao distrito Aveiro, é a localidade mais próxima de Sula. É ali que se encontra a campa de Rui Mendes, num cemitério bastante descentralizado e cuja localização promete afastar aqueles que por lá pretendem passar. Por ser bastante fora da localidade, o silêncio é recorrente e, pela manhã, poucas são as pessoas que se deslocam àquele local. Ainda assim, a última semana foi vivida de maneira diferente, dado que o dia 18 de maio faz com que o movimento aumente por aquela zona, tal como o Observador comprovou. Junto à sepultura do adepto do Sporting encontram-se agora os seus pais e o que salta à vista é o cuidado e o estado de conservação com vista à preservação da sua memória.

Na parte superior, ao lado de uma sentida mensagem da esposa e dos filhos, vislumbra-se uma bandeira verde e branca dos leões, igual às que o clube utilizou na coreografia inicial do último Sporting-V. Guimarães, presumindo-se que seja mesmo essa a sua origem. Ao lado está um cachecol do clube de Alvalade bastante deteriorado e, no centro da campa, encontram-se inscritos o nome, as datas de nascimento e de morte e uma fotografia de Rui Mendes, numa homenagem feita pelo Núcleo do Sporting Clube de Portugal da Mealhada, que tem o seu símbolo fixado num dos cantos. A cobrir a sepultura encontra-se entrelaçado um cachecol do Sporting em excelente estado, bem como uma corneta verde. Ao fundo, junto ao chão e encostada à campa, está uma placa com um poema intitulado “Versos do pai 96”.

Meu querido filho Tu para mim eras um amor Mas tiveste a pouca sorte Mataram-te no Jamor.

Eras um filho disciplinado e trabalhador Mas foste buscar a morte ao Estádio do Jamor. Malditas claques que dão tanto que falar E levam armas para os estádios para matar.

Luso, a vila que se “entupiu de pessoas” na despedida a um “trabalhador exemplar” que tinha no futebol um hobbie

De regresso ao “coração” do Luso, o Observador deparou-se com um café/restaurante com um nome bastante sugestivo e decidiu entrar. Trata-se do Café Sarmento, mais conhecido como “O Cantinho do Árbitro”, que se encontra um tanto ou quanto agitado e provoca uma grande azáfama a Eduardo Fernandes e à mulher, os proprietários do estabelecimento. Ao passar um rápido olhar pelas paredes, percebemos que estávamos no sítio certo: posters dos títulos de Sporting e FC Porto, do inédito apuramento da Seleção feminina para o Campeonato do Mundo de 2023, inúmeras camisolas de clubes, de árbitros e diversos cachecóis. Ao centro, por cima do balcão, encontra-se uma grande fotografia de homenagem ao proprietário, e foi por aí que começou a sua conversa com o Observador: “Comecei a jogar [futebol] aqui na zona e depois passei por Salgueiros e Infesta. Depois joguei em Coimbra e Aveiro. Aos 29 anos tornei-me árbitro da Associação de Futebol Aveiro, até aos 48 anos”.

Quando mudámos o rumo da conversa e falámos sobre o tema desta reportagem, o lacrimejar nos olhos de Eduardo denunciou tratar-se de uma pessoa que conheceu Rui Mendes de perto. Confirmou-se: “Conheci-o aos 18 anos. Ele trabalhava para o pai na construção civil e nessa altura faziam-se uns torneios e amigáveis de futebol de 6 no Campo dos Patos, onde é agora o Pavilhão do Luso. Ele jogava nos torneios com a malta daquela geração. Sei que ele era sportinguista, era um trabalhador exemplar e nunca soube ou presenciei qualquer desentendimento dele. Ele ia ver quase todos os jogos do Clube Desportivo do Luso com o pai. Gostava de bola e era o braço direito do pai no trabalho. Quando aconteceu isso [a morte], estávamos no Campo dos Patos quando soubemos. Estávamos a começar a jogar quando soubemos que morreu um adepto do Sporting no Jamor. Constatou-se logo que era o Rui. Fomos às bombas da gasolina e disseram-nos que não tinha sido ele. Em casa do sogro igual. Passado pouco tempo confirmou-se porque alguém o conheceu pelos sapatos. Ele estaria connosco no torneio se não tivesse ido a Lisboa…”, lamentou, acrescentando que estes dias de “final da Taça” são “sempre” de “memória”.

“Foi um choque pelo momento em que aconteceu. Era a Taça de Portugal, estava a ser transmitida para todo o país. A memória que eu tenho dele foi sempre no futebol. Era o nosso escape. A maior convivência que tive com o Rui foi aí. O Rui não tinha inimigos”, lembrou Eduardo Fernandes. Convidado a recordar o dia do funeral, o dono do café respondeu em poucas palavras: “Era um mundo de gente e uma grande parte dos presentes nunca conheceram nem imaginaram quem era o Rui. A tragédia em si é que trouxe essa multidão. O Luso ficou entupido de pessoas”. Quando à atualidade, Eduardo assumiu que a “tragédia do Rui” ainda é recordada no Luso, nem sempre pelos melhores motivos. “Acontece sempre em conversas de café antes ou após os Benfica-Sporting. [Os adeptos] agridem-se verbalmente e o tema vem à baila. Não se zangam mas mandam isso. Pode acontecer em qualquer lado e de um momento para o outro, seja no futebol, no cinema ou numa prova de rali”, sublinhou.

“A morte trágica e a maneira como aconteceu mexeu com o nosso meio porque conhecíamos bem o Rui e a família”, concluiu Eduardo Fernandes, numa mensagem que foi partilhada por três senhores que, àquela hora, se encontravam junto ao balcão a conversar. Um deles era António Laranjeira Marques, orgulhoso adepto sportinguista que, em 1995, esteve na final da Taça de Portugal entre o Sporting e o Marítimo (2-0), juntamente com Rui Mendes. “Estive com ele no Jamor a ver o Sporting-Marítimo [1995]. Éramos amigos [enumerou quem os acompanhou]. Nesse ano em que ele morreu, eles também queriam que eu fosse ver o Sporting-Benfica, mas eu sempre disse: ‘Sou sportinguista, mas nunca vou ver um Sporting-Benfica ou um Sporting-FC Porto’. Não quis ir por opção porque não gosto de confusões. Guardei todos os jornais da época em que morreu o Rui…”, explicou ao Observador. Ao lado, por entre outras conversas e a azáfama de um café, surgiu um tímido: “Já foi há uns anos… Foi lamentável um rapaz perder a vida assim”.

As memórias entre o Jamor e Alvalade e o “rapaz que não se metia em confusões”

Fundado poucos anos antes, em 1990, o Núcleo do Sporting Clube de Portugal da Mealhada organizou, como em tantas outras ocasiões, uma excursão para quem quisesse estar naquela final do Jamor. Foi nesta condição que Rui Mendes, acompanhado de dois amigos, marcou presença no dérbi de 1996. “Na véspera fui buscar os bilhetes e, nesse dia, avisaram-me para termos atenção porque ia haver muita segurança. Sei que houve uma reunião entre o Governo Civil de Lisboa, as Câmaras de Lisboa e Oeiras, a PSP, a GNR… com todas as entidades envolvidas, bem como as claques dos dois clubes e um representante dos Núcleos. Ficou assente tudo o que se podia levar. Assim que a equipa do Benfica entrou em campo, começaram a surgir fumos”, explicou ao Observador António Ferraz, à data membro da direção do Núcleo, presidida por António Cerveira.

“O primeiro very light saiu logo no início do jogo. A claque do Sporting saiu do local onde estava. Quando saiu o segundo very light, que acertou no Rui mas podia ter acertado em qualquer um, as claques já estavam a sair como forma de protesto. Domingo, se você me oferecer o bilhete, o jantar e a viagem, eu não vou. Há muita gente do Sporting que não vai. Daqui só vão dois ou três. Estou convencido que no domingo as coisas [pirotecnia] já estarão escondidas no Jamor. Isto serve tanto para uma claque, como para a outra”, acrescentou, enquanto explicava que o “primeiro very light bateu nos eucaliptos”, ao passo que o segundo caiu “na bancada Norte”, no meio dos adeptos sportinguistas. Nas paredes – verdes e brancas, como não podia deixar de ser – do Núcleo da Mealhada, por entre os inúmeros cachecóis, camisolas e galhardetes alusivos ao clube, destacam-se duas recordações dessa altura: o bilhete do jogo, que custou seis mil escudos, e um quadro com a homenagem que o Sporting realizou a Rui Mendes em agosto de 1996, através de uma Corrida de Toiros.

“Isto vem de uma grande Corrida de Toiros que o Sporting fez no Campo Pequeno, em agosto de 1996. Temos também uma fotografia do almoço que aconteceu no dia 10 de junho de 1996 e que contou com a presença dos filhos. No 10 de junho, que é o Dia da Raça, fazemos sempre um almoço. O Sporting portou-se muito bem. O Sporting ajudou os miúdos até atingirem a maioridade. O doutor José Roquette fez questão disso. O Rui era meu vizinho. Era um rapaz que não se metia em confusões. Na altura ele só foi por causa dos dois amigos. Se os amigos não fossem, tenho a certeza que ele não ia. A direção do Sporting e o senhor Maurício do Vale, que estava muito ligado ao José Roquette, tiveram um comportamento excecional e não faltaram com nada”, afirmou.

Pouco depois, Armando Catalão entrou na sala e interrompeu durante alguns segundos a conversa. Apresentou-se como atual tesoureiro do Núcleo, antes de acrescentar: “O primeiro dinheiro que os filhos receberam foi do seguro do Círculo de Leitores”. “Sei que o Maurício do Vale entrava em contacto com o cunhado para saber o que era preciso. O Sporting tinha uma bolsa que dava à família enquanto os miúdos estudavam. Todas as direções do Sporting que vieram respeitaram as coisas. O Benfica tinha obrigação de dar muito mais e não deu nada. O cunhado dele era benfiquista e desligou-se do clube por causa da atitude. Nunca houve nada [do Benfica]”, recordou Ferraz. Volvidas três décadas, o dérbi eterno vai voltar a Jamor e a receita dos dois sportinguistas é simples: “Temos uma casinha humilde, que vai encher domingo”. É desta forma que se espera que o dia 25 de maio perdure na história do futebol português, sem nunca esquecer um passado que continua a marcar a festa mais bonita da temporada nacional.

observador

observador

Notícias semelhantes

Todas as notícias
Animated ArrowAnimated ArrowAnimated Arrow