Negócios da China e fake news da Rússia. Espiões, só dos EUA

A ideia não é nova e remonta ao primeiro mandato do Presidente Donald Trump: Washington quer comprar a Gronelândia. Mas na capital, Nuuk, e em Copenhaga, a resposta negativa à proposta também não se alterou. A porta fechada ao negócio não demoveu o líder norte-americano e, da economia, este virou-se para os serviços secretos. Em maio, ordenou à comunidade dos serviços secretos que colocasse a recolha de informação sobre a Gronelândia no topo das prioridades. Esta semana, a televisão pública dinamarquesa denunciou uma operação na maior ilha do Ártico, levada a cabo por três homens com ligações à administração de Washington. Copenhaga apressou-se a chamar o representante dos Estados Unidos no país para condenar a operação.
Por trás das ações dos serviços secretos dos Estados Unidos na Gronelândia está a premissa de que a segurança nacional depende do território dinamarquês, com administração autónoma. “Precisamos [da Gronelândia] para a segurança internacional. Sabia que temos barcos russos, temos barcos chineses, navios armados por todo o lado (…) para cima e para baixo na costa da Gronelândia?”, argumentou Trump numa entrevista à NBCNews, em maio deste ano.
“Exceto que [os barcos] não existem. A China não tem nenhuma operação marítima ao largo da Gronelândia. Estamos a ver uma dissonância muito, muito grande entre os factos e a narrativa”, critica Marc Lanteigne, professor de Ciência Política e Estudos de Segurança na Universidade Ártica da Noruega, em Tromsø, ao Observador. Em 2019, quando Donald Trump ameaçou comprar a Gronelândia pela primeira vez, a presença chinesa na ilha era reduzida, com algumas operações de extração de minérios a meio gás. Hoje, não há nenhum projeto chinês ativo na ilha e a presença de Pequim na ilha limita-se a alguma intervenção no setor das pescas.

▲ Trump ordenou aos serviços secretos que se focassem na Gronelândia
WILL OLIVER / POOL/EPA
O caso russo é diferente, já que Moscovo reforçou realmente a sua presença marítima no Ártico. Porém, esse reforço não se verificou necessariamente na Gronelândia, mas antes dentro das suas próprias fronteiras — afinal, a Rússia é o país que tem mais área dentro do círculo polar ártico e as costas da Sibéria estendem-se por mais de metade do território no extremo norte do globo. O reforço da posição russa é justificado pelos serviços secretos dinamarqueses com o novo “clima volátil das políticas de segurança”, causado por uma combinação de fatores, entre os quais se conta a guerra na Ucrânia.
Neste novo contexto, os Serviços de Informação de Defesa da Dinamarca (DDIS na sigla original) identificaram, já no final de 2022, a Rússia como uma potencial ameaça à Gronelândia. Em causa não estava apenas “a posição militar de força” da Rússia no Ártico, mas a possibilidade de o Kremlin tentar utilizar a Gronelândia para desestabilizar a coesão da NATO. Passados quase três anos, Copenhaga apontou em várias ocasiões para a presença de uma mão russa em Nuuk: não através de espiões ou submarinos, mas de campanhas de desinformação e aproveitamento político do novo contexto.
Alterações climáticas e guerra na Ucrânia renovam atenção do Ocidente à GronelândiaHistoricamente, o principal valor da região do Ártico foi a sua riqueza em recursos: por baixo do gelo, ficam algumas das maiores reservas mundiais de petróleo, gás natural e também de minerais com aplicações industriais e tecnológicas — entre as quais, as terras raras. Mais recentemente, o degelo nos polos, causado pelas alterações climáticas, abriu novas rotas no Ártico, importantes para o comércio e as comunicações globais. Além disso, a região revestiu-se de importância científica, principalmente no estudo das alterações climáticas e da exploração especial.
Contudo, neste momento, o Ártico tornou-se num elemento central de debate da ordem internacional por motivos securitários e de Defesa. Apenas sete países do mundo têm territórios no círculo polar ártico: Estados Unidos, Canadá, Dinamarca (através da Gronelândia), Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia, que ocupa a maior parte. Ou seja, uma das zonas menos exploradas e com mais potencial do globo é casa apenas da Rússia e de seis Estados da NATO.
"A Rússia tem tanto do seu próprio Ártico que nunca olhou verdadeiramente para a Gronelândia (exceto talvez para esconder submarinos nos fiordes gronelandeses)."
Ulrik Pram Gad, analista no Instituto Dinamarquês de Estudos Internacionais
O interesse dos países da Aliança pelo Ártico cresceu depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia em 2022 — nesse mesmo ano, Finlândia e Suécia juntaram-se à NATO e os DDIS destacaram que, “apesar das pesadas derrotas na Ucrânia”, a Rússia mantivera as posições estratégicas na região. Uma análise da Reuters, do mesmo período, mostrava que Moscovo não tinha apenas mantido, mas aumentado o número de bases militares e navais na região, reabrindo dezenas de antigas bases da era soviética.
Contudo, nenhuma destas mudanças se refletiu numa maior presença militar russa na Gronelândia. Os especialistas ouvidos pelo Observador admitem que seria impossível confirmar em fontes abertas a dimensão dessa presença, mas consideram que Moscovo não tem sequer particular interesse em estar na Gronelândia. “A Rússia tem tanto do seu próprio Ártico que nunca olhou verdadeiramente para a Gronelândia (exceto talvez para esconder submarinos nos fiordes gronelandeses)”, argumenta Ulrik Pram Gad, analista no Instituto Dinamarquês de Estudos Internacionais e antigo funcionário do governo autónomo de Nuuk.
A realidade chinesa é completamente oposta. Em 2018, Pequim anunciou uma estratégia nacional para o Ártico e declarou ser “um participante, construtor e contribuidor ativo para os assuntos do Ártico”. Patrik Andersson, analista no Centro Nacional Sueco sobre a China, resume os interesses chineses na região em quatro dimensões: “recursos naturais, rotas comerciais, investigação científica e considerações militares” e ressalva que as considerações militares são as menos expressivas. Afinal, ao contrário da Rússia ou da NATO, a China não tem territórios no Ártico e as suas prioridades militares estão noutros palcos internacionais, nomeadamente em Taiwan e no Mar do Sul da China.
O interesse militar da China pelo Ártico prende-se antes com um plano estratégico a longo prazo, aponta o especialista em política externa chinesa. “É um lugar em que a China tem de estar ativa e capaz de projetar força de forma a tornar-se uma superpotência mundial”, afirma ao Observador. Neste momento, porém, a projeção é “limitada”.

▲ A Rússia não precisa de ir além fronteiras para explorar o Ártico
Getty Images
No final de março de 2025, dias depois das eleições legislativas na Gronelândia, a recém-empossada ministra dos Negócios Estrangeiros, Negócios e Comércio, Vivian Motzfeldt, declarou à agência noticiosa Xinhua que a cooperação com Pequim era uma das prioridades do novo executivo. “A China é muito importante para nós e estamos entusiasmados por aprofundar a nossa cooperação”, afirmou a ministra. As palavras da ministra refletem a política económica de Nuuk: “disponíveis para negociar“. O lema já foi ouvido em 2019 e novamente no início deste ano, por ocasião das declarações de Donald Trump: “Disponíveis para negociar, mas sem estar à venda”.
O professor da Noruega, Marc Lanteigne, declara que esta posição se prende com o objetivo a longo prazo de Nuuk de obter a independência da Dinamarca. Apesar de ser um território autónomo, a economia gronelandesa depende, em grande parte, de subsídios atribuídos pelo Governo de Copenhaga, pelo que a abertura para estabelecer negócios com vários parceiros é uma forma de consolidar a economia local e permitir a autodeterminação do povo gronelandês.
Apesar de esta se desenhar como uma relação estritamente comercial, os serviços secretos dinamarqueses também identificaram a presença de projetos chineses como um risco de segurança, devido ao controlo que Pequim tem sobre a economia. “[Os serviços secretos] consideram que os atores chineses privados podem ser mobilizados pelo Estado chinês, incluindo os serviços de informação chineses para fins geoestratégicos ou de informação”, pode ler-se no relatório de 2023. “Isto significa que os investimentos chineses podem ter objetivos geoestratégicos ou de política de segurança que vão além dos interesses oficialmente declarados pelos atores chineses como razões para a cooperação”, continua o texto.
No entanto, o alerta dos serviços secretos parece ser pouco mais do que um alerta hipotético, pois a presença de negócios chineses na Gronelândia nunca chegou a consolidar-se e muitos dos principais projetos nunca avançaram. Alguns exemplos mencionados pelos analistas e pela imprensa internacional são os da empresa de Hong-Kong General Nice, que obteve uma licença para explorar minério de ferro mas nunca iniciou a construção da mina e acabou por perder a licença, e da NFC, uma empresa pública chinesa que pretendia explorar zinco no norte da Gronelândia, mas não chegou a um acordo final com parceiros internacionais.

▲ A atenção internacional terá levado a China a desistir de muitos dos projetos na Gronelândia
Mads Claus Rasmussen/EPA
Outras empresas chegaram a operar mas fecharam portas, como a Shenghe Resources, uma empresa com ações minoritárias num projeto de exploração de terras raras no sul da ilha. A exploração foi suspensa pelo Governo de Nuuk devido a preocupações ambientais com a mineração de urânico e, anos depois, continua suspensa — uma decisão que ainda pode ser revertida. “Para além disso, a presença chinesa na Gronelândia parece limitada a um pequeno número de trabalhadores chineses em fábricas de processamento de peixe na costa oeste e talvez alguns turistas”, remata Patrik Andersson ao Observador.
O analista aponta que os serviços secretos ocidentais veem em todos estes projetos uma possibilidade de Pequim recolher informações sobre as suas posições no Ártico — tal como alertam os serviços secretos dinamarqueses — e não rejeita a hipótese de essas atividades já terem sido levadas a cabo na Gronelândia. Contudo, precisamente devido à atenção e à pressão do Ocidente, parece totalmente improvável que a China continue a ter ou planeie ter num futuro próximo operações desta natureza. “É mais difícil para os serviços secretos chineses operarem sob a fachada de civis ou investigadores, mesmo que quisessem ser mais ativos neste sentido”, analisa.
A desinformação e influência política russa na ilha para desestabilizar a NATOEm janeiro de 2022, as autoridades norueguesas detetaram dois cabos de fibra ótica destruídos ao largo do arquipélago norueguês de Svalbard, no centro do Ártico. No final do mesmo ano, em território continental, foi detido um espião russo que operava a partir de Tromsø. Apesar de o primeiro incidente nunca ter sido ligado de forma inegável a Moscovo, Oslo interpretou os dois como partes de uma única campanha do Kremlin, com o objetivo de espiar, sabotar e infiltrar-se nos países da NATO, agora que estava envolvido numa guerra que conta com a intervenção indireta da Aliança, através do apoio a Kiev.
Ainda que estas movimentações frequentes possam ter criado, como define Ulrik Pram Gad, um “sentimento de vulnerabilidade” entre os gronelandeses, na Gronelândia não houve relatos — confirmados ou suspeitos — de sabotagem subaquática ou espionagem. Neste caso, presença russa fez-se sentir principalmente através de campanhas de desinformação. Em janeiro, o DDIS anunciou que tinham sido identificados e removidos conteúdos de um perfil falso nas redes sociais com ligações a Moscovo.
"Pode não ser uma forma de atividade direta do Estado, mas há muitas formas de algumas forças fazerem os recados da Rússia (...), notícias falsas e desinformação tendem a ser [formas] mais subtis."
Steen Kjærgaard, major das Forças Armadas e analista na Academia de Defesa Dinamarquesa
“A publicação procurava explorar o debate público dentro e sobre a Gronelândia de forma a piorar as relações entre a Dinamarca e os Estados Unidos. A operação de influência deve ser vista como parte de uma influência em curso, em que a Rússia está a tentar criar discórdia na relação transatlântica e minar o apoio ocidental pela Ucrânia”, pode ler-se na análise deste ramo dos serviços secretos de Copenhaga.
No mês seguinte, as autoridades voltavam a fazer um novo aviso para a possibilidade de a Rússia tentar influenciar as eleições, promovendo perfis falsos e falsificando declarações de políticos, de modo a denegrir a relação entre Washington, Copenhaga e Nuuk. Na verdade, não foi a primeira vez que este fenómeno se verificou. Já em 2019, durante o primeiro mandato de Donald Trump, o senador norte-americano Tom Cotton, que assumiu os créditos pela ideia de comprar a Gronelândia, recebeu uma carta que dava a entender que Washington estava a apoiar, monetária e politicamente, um processo de independência gronelandês.
A carta estava assinada pela então ministra dos Negócios Estrangeiros da Gronelândia, mas acabou por se revelar uma falsificação. “Pode não ser uma forma de atividade direta do Estado, mas há muitas formas de algumas forças fazerem os recados da Rússia (…), notícias falsas e desinformação tendem a ser [formas] mais subtis”, argumentava, à data, Steen Kjærgaard, major das Forças Armadas e analista na Academia de Defesa Dinamarquesa.
No caso da Gronelândia, as movimentações russas não se aceleraram apenas desde fevereiro de 2022. No início de 2025, assistiu-se a uma renovação destas operações de desestabilização. Ivana Stradner e Mariana Chernin, analistas no think tank Fundação pela Defesa das Democracias, atribuem esta nova postura de Moscovo ao regresso de Donald Trump à Casa Branca e às suas declarações sobre a compra da Gronelândia.

▲ As ações russas terão como objetivo afastar a Dinamarca e os Estados Unidos
NILS MEILVANG/EPA
As duas investigadoras argumentam que as atividades russas contra a Gronelândia acabam por servir um duplo propósito político. Por um lado, servem para afastar a Gronelândia, o segundo maior território terrestre no círculo polar ártico, dos Estados Unidos. Por outro, ajudam a validar a justificação russa para ter invadido, ocupado e anexado, de forma ilegal, o território ucraniano da Crimeia.
Esta ideia é visível nas declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que, em janeiro, declarou que a “necessidade de ouvir o povo gronelandês” quanto à proposta de compra de Donald Trump era “semelhante” à forma como Moscovo diz ter ouvido o povo da Crimeia e do Donbass quanto “ao golpe de Estado ilegal” do Governo ucraniano.
Rússia e China são ameaças estratégicas aos EUA ou “mais conversa do que ação”?No verão de 2025, nada aponta para a presença de espiões russos ou chineses na Gronelândia. Mas, a verificar-se a sua presença, esta não seria surpreendente, tendo em conta o valor estratégico da ilha, o facto de ser um território da NATO e com uma forte presença do maior adversário de ambos os países: os Estados Unidos. Mais surpreendente é a presença dos três espiões norte-americanos, denunciada esta semana.
“Os recursos de recolha de informação são por si só limitados”, afirmou, em maio, um antigo responsável dos serviços secretos ao Wall Street Journal, notando que, por esse motivo, são investidos em “ameaças percecionadas e não países aliados”. À data, depois de o jornal norte-americano ter denunciado a colocação da Gronelândia no topo da lista de prioridades, com o objetivo de identificar gronelandeses apoiantes do projeto de compra de Washington, o recém-eleito primeiro-ministro gronelandês classificou a operação como “inaceitável, anormal e desrespeitosa“.
"Eu sei que há preocupações maiores sobre a cooperação entre a China e a Rússia, com a partilha de dados, de operações científicas, mas isto é mais conversa do que ação — [houve] missões conjuntas do Exército e da Guarda Costeira da Rússia e da China, mas a maior parte foi mais simbólica, uma forma de dizer 'estamos aqui' e não uma ameaça real."
Marc Lanteigne, professor de ciência política e estudos de segurança na Universidade Ártica da Noruega, em Tromsø
O analista Ulrik Pram Gad justifica a decisão com o facto de Washington ter mais motivos para estar preocupado com movimentações chinesas e russas no Ártico do que os gronelandeses. Em causa não está necessariamente a ilha mas o corredor marítimo G.I.UK (Greenland, Iceland, United Kingdom) — ou seja, os dois estreitos entre as ilhas da Gronelândia, Islândia e do Reino Unido. “A estratégia básica militar dos EUA [exige] o controlo do território da Gronelândia para contrariar ataques com mísseis nucleares russos por cima do Polo Norte e com submarinos a esgueirar-se pelo G.I.UK”, elabora.
Já no caso chinês, aplica àquela região a doutrina Monroe — princípio basilar da política externa norte-americana que define a relação com as restantes nações americanas como prioritárias e que se opõem a competição nesses territórios — para justificar a oposição da Casa Branca a qualquer presença chinesa (ou de qualquer outra potência rival) em todo o continente americano e, neste caso, no Ártico.
Porém, o professor Marc Lanteigne questiona a divergência entre possíveis justificações para as ações norte-americanas e a realidade na região, que é menos ameaçadora. “Eu sei que há preocupações maiores sobre a cooperação entre a China e a Rússia, com a partilha de dados, de operações científicas, mas isto é mais conversa do que ação — [houve] missões conjuntas do Exército e da Guarda Costeira da Rússia e da China, mas a maior parte foi mais simbólica, uma forma de dizer ‘estamos aqui’ e não uma ameaça real”, analisa.
Mesmo que uma ameaça chinesa ou russa se concretizasse, os analistas destacam que os EUA já controlam militarmente a Gronelândia — não só por se tratar de um território da NATO ou por terem a base de Pitufik, mas pela presença efetiva de tropas norte-americanas na ilha. Somado este controlo ao afastamento da China nos últimos anos e ao foco da Rússia noutras áreas do Ártico, a insistência dos Estados Unidos na Gronelândia revela-se menos uma corrida não contra os rivais em Moscovo e Pequim e mais contra os aliados em Nuuk e em Copenhaga.
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