Kalorama, dia 2: uma lição de liberdade

A onda dos Boy Harsher é subterrânea, mais propícia a clubes enfumaçados do que festivais de verão, estabelecendo assim um contraste interessante. Com recurso a pads, teclados e até um shaker para produzir distorção, Muller cria a tela de beats irresistíveis e melodias que lembram de Bauhaus a Eurythmics para Matthews pincelar com a sua voz. Esta, de tons graves e quentes, é relativamente monocórdica, mas isso joga a seu favor, parecendo encantatória, fantasmagórica a espaços. Em vez de uma sereia que arrasta marinheiros para o seu fim, atrai ouvidos incautos para a perdição dos becos escuros e dos bas-fonds de qualquer espaço urbano. A essa propriedade sedutora intercala com gritos como se de uma aparição se tratasse.
“We play dance music”, afirmou Matthews depois das apresentações. Não era preciso tê-lo dito, toda a gente presente o demonstrou, quer durante o revivalisno de LA e Fate, a sedução imolante de Come Closer ou Tower, com uma batida aterradora a recordar o som do aproximar de Jason Vorhees, mas em esteróides. De final, já com a cantora a admitir que estava a ficar sem voz e a pedir para que a auxiliassem, Pain demonstrou porque é que tem sido um hit de culto desde que foi lançada, em 2014: é o tipo de malha que o Buffalo Bill usaria para bambolear-se antes de matar alguém em O Silêncio dos Inocentes. Sim, isto é um elogio.
Assim que Azealia Banks irrompeu pelo palco adentro, a vasta multidão à sua frente estava conquistada — e manteve-se com a artista norte-americana até ao último segundo do concerto. Não foram precisos quaisquer artifícios, nem bailarinos nem efeitos de pirotecnia, para agarrar o público e fazer um espetáculo completo no Palco MEO. O formato tradicional hip hop, de rapper acompanhada por um DJ, acabou por provar que menos é mais.
A rapper nova-iorquina tem um estilo muito próprio, ao rimar por cima de batidas eletrónicas de diferentes velocidades, texturas e ambientes. São a cama necessária para acomodar a sua belíssima voz, que Azealia Banks tanto usa enquanto rapper mordaz, de língua afiada; como utiliza para a sua faceta de cantora de R&B, usando a melodia como outro dos seus valiosos trunfos.
Entre um rap acelerado e agressivo, uma voz sedutora e melosa e instrumentais variados que iam criando tensão e espoletando momentos de explosão junto da plateia, tudo isto poderia ter corrido muito mal se as condições de som não estivessem irrepreensíveis. Uma música de muitos graves tratada à altura, como muitas vezes não acontece nos grandes palcos e festivais, vital para tornar a experiência realmente prazerosa.
Pelo meio, à boa tradição do hip hop, ainda houve diversos momentos acappella em que a artista aproveitou para explorar (e demonstrar) os seus dotes líricos. Sempre envolta em grandes ondas de controvérsia, por causa de momentos protagonizados ou declarações inesperadas, muitas vezes também recebidas com incompreensão, muitas vezes as suas polémicas e comentários provocadores tornaram-se mais conhecidos do que a sua própria música.
Ingrato, mas também revelador da inconsistência que tem marcado a sua carreira. A caminho das duas décadas a editar música, só lançou um único álbum de originais, Broke with Expensive Taste (2014), embora também conte com dois EPs, três mixtapes e muitos singles soltos no currículo. Tem sido difícil superar as expetativas geradas por diferentes momentos do seu trajeto, mas talvez seja em palco que essa promessa mais se materializa, o local de culto à música — e ícone — de Azealia Banks. Com a sua atitude empoderadora, arrojada, de quem usa o ego como statement e matéria-prima criativa. Uma performer nata que também encontrou na comunidade LGBTQIA+ um público devoto, que pela sua orientação sexual a acarinhou como uma referência sua, não obstante também aí ter protagonizado controvérsias relativamente a comentários passados.
Ao palco San Miguel, subiu uma outra artista que partilha das algumas características de Banks. Diva de presença habitual em Portugal, Róisín Murphy é também ela um ícone no universo queer e também ela envolveu-se em polémicas, desta feita devido a opiniões expressadas sobre a comunidade trans. No entanto, a verdadeira controvérsia da noite foi a forma como encarou o seu concerto a encerrar o palco San Miguel.
“É maravilhoso estar de volta à vossa bela cidade”, afirmou, seguindo-lhe um “outra vez, e outra vez, e outra vez”. Talvez seja esse o problema; habituámo-nos a vê-la a dar performances de mandar a casa abaixo de tal forma — basta recordar o Super Bock Super Rock de 2023 — que foi inesperada a forma como se apresentou esta noite, num registo excessivamente lânguido, por vezes a roçar a complacência.
A coisa até começou bem, chegando ao palco com a excentricidade que lhe é costumeira, vestida como se o Rato Mickey fosse a uma festa pride, e arrancando com Pure Pleasure Seeker, uma das várias canções que trouxe dos Moloko, a sua lendária ex-banda. Aqui, o funk pulsava, os sintetizadores ecoavam com prazer e a cantora irlandesa mostrava como o tempo não passa pela sua voz. Simulation, já de cartola posta e casaca a adorná-la, manteve a toada entre gemidos orgásticos e disco em banho maria, e em Overpowered até a vimos a abanar a cabeça como se estivesse num concerto bem mais pesado.
observador