De Franco à monarquia: Manuel Vicent revela a história da Espanha através de figuras-chave

O Retábulo Ibérico de Manuel Vicent é composto por três livros ( Aguirre, o Magnífico, A Sorte da Loira e Desfile dos Cervos , todos publicados pela Alfaguara). Mas agora poderia ser um único livro sobre a história da Espanha, escrito pelo melhor prosador da época desde o pós-guerra.
O escritor espanhol Manuel Vicent durante uma entrevista em Madri. Foto: Cézaro De Luca.
Vicent escreveu essas histórias ao longo do tempo. Elas refletem suas experiências de vida, seu trabalho como jornalista no El País e seu conhecimento das pessoas. Seu enorme talento para contar histórias é em grande parte influenciado pelas personalidades que conheceu.
Ao longo de sua carreira literária, Vicent narrou o que aprendeu com enorme habilidade , recontando, recorrendo à memória, combinando ironia e conhecimento. O livro abrange uma trilogia que, pela primeira vez, alcança o ar de uma obra completa, que desta vez, já pelo próprio título, "Retábulo Ibérico", aborda a história da Espanha desde a morte de Franco. Nascido em 1935, contemporâneo de Mario Vargas Llosa, possui, como este último, não apenas uma memória excepcional, mas também uma prosa ainda mais brilhante quando relata o que sabe dos anos que viveu desde a mais tenra infância.
Este novo livro dele é um olhar sobre a Espanha em tempos de esperança, dor e crise... Na conversa que se segue, ele conta como era aquele retábulo, visto por um narrador privilegiado de uma época e de um país.
–Como você vê esse país agora?
– Neste momento, a situação está no fundo do poço. Criou-se uma atmosfera nefasta em torno da política, encobrindo toda a felicidade individual dos cidadãos e inundando todos os projetos potencialmente positivos do governo...
– Todo esse novo mundo que está surgindo, o mundo das mídias sociais, conspirou a favor da direita espanhola para dar uma espécie de golpe de Estado que visa forçar o chefe de governo a renunciar por exaustão... Eles estão esperando que esse dia chegue, especialmente a extrema direita. Alguns apostam nisso, enquanto outros acreditam que o atual chefe de governo é um homem durão que resistirá até 2027, quando seu mandato termina.
O escritor espanhol Manuel Vicent durante uma entrevista em Madri. Foto: Cézaro De Luca.
–E aqui está a sua trilogia, cantando o passado, que se assemelha a este tempo, aliás…
– Não tenho talento para inventar personagens. Mas sei usar pessoas reais que, em determinado momento, personificaram parte da história deste país, suas sensibilidades, seu modo de vida, sua sociologia. Cerquei tudo isso com uma atmosfera literária que o torna crível e o apresenta como referência a um tempo e lugar com os quais muitas pessoas se identificam por terem vivido a história deste país.
–Começa com a vida de Jesús Aguirre, o Duque de Alba…
–Sem querer, me deparei com aquele personagem real, mas praticamente fictício, que era Jesús Aguirre… Narrar sua vida, com seus seguidores, com seus amigos, narrar como ele se desenvolveu pessoalmente puxando todos os fios de sua psicologia, representa uma história sintetizada dos tempos na Espanha, da década de 1940 até o final da década de 1960…
–A segunda parte da trilogia apresenta Carmen Díaz de Rivera, a mulher que ajudou Adolfo Suárez, o falangista de origem que ajudou a trazer a democracia depois de Franco…
– Outra personagem viva e real é Carmen Díaz de Rivera. Seu melodrama pessoal [como a filha não declarada do segundo em comando de Franco após a guerra] daria para um romance por si só. Assim como sua realização política através de sua amizade com Suárez, formando um trio com o Rei Juan Carlos, que era então um príncipe... Muitas vezes, grandes eventos históricos, neste caso a Transição Espanhola, podem ser explicados por episódios como este, que, à primeira vista, podem ser considerados frívolos ou talvez ineficazes, mas que para mim estão na origem daquele episódio crucial da era pós-Franco. O fato de Suárez, um grande político que não era culto, mas tinha um ótimo faro para saber onde o poder realmente estava, sabia como apoiar aquele que realmente detinha as rédeas.
–A amizade os levou a criar a democracia…
–Suárez e aquela jovem loira e moderna, de família aristocrática, com um drama pessoal, mas uma mulher moderna que sente o cheiro do poder, pressentiram os novos tempos que a Espanha estava prestes a atravessar… O rei Juan Carlos acaba no que mais tarde se tornaria [um abismo, em termos espanhóis], mas naquela época ele era um príncipe amado pelo povo e, depois, o primeiro Bourbon amado por seus súditos. Franco lhe deu um país que ele depois arruinou, mas que não se podia saber naquela época… Então Suárez perdeu a memória e se tornou, com o tempo, um espelho vidrado, uma névoa de memória, mas um verdadeiro herói…
O escritor espanhol Manuel Vicent durante uma entrevista em Madri. Foto: Cézaro De Luca.
–A terceira parte da trilogia volta a apresentar a família real na vida espanhola como literatura…
– Foi porque o pintor Antonio López, um dos grandes nomes da pintura espanhola, foi contratado para pintar um retrato da Família Real... Só posso imaginar a coragem de Goya ao retratar os monstros que se escondiam na família real de sua época... De qualquer forma, Antonio López queria e não queria pintar o retrato, o que lhe levou vinte anos. Ele o fez por prestígio, numa época em que a corrupção se desenvolvia, não tanto física quanto moral, o que era evidente nas ruas. Assim, depois desses vinte anos, Antonio López emerge de um frequentador dominical de classe média em uma pequena cidade de Castela, que sai depois da missa da uma da tarde de domingo, juntos, para tomar um aperitivo na Casa Paco, onde comem pratos típicos de Madri: camarão ao alho ou ovos ao estilo flamenco. Em outras palavras, a família real se torna uma família desprovida de qualquer embelezamento interior, não exterior...
–Esse é o retrato que sai de Antonio López…
–E esse retrato também indica todo o desenvolvimento da monarquia até os dias atuais… Mas todos esses são fatos reais sobre pessoas reais transformados em ficção, cercados por uma atmosfera que envolve tudo em um espelho frio…
–Vicent, você já considerou que sua maneira de contar a história, e não apenas esta história, faz de você uma espécie de Velázquez do século XX?
– Bem, cara, isso é muita coisa... Velázquez vem de Caravaggio e quer ser Ticiano... Ele sente que Ticiano está compondo volumes através da cor. A cor, para ele, é um sentimento. Mas ele não chega a alcançá-lo; ele fica a meio caminho entre Caravaggio e Ticiano, e pinta o ar... Para mim, o fato de os personagens que retratei se moverem dentro de uma névoa, de não serem definidos, de poderem ser vistos de vários ângulos, é o que cria a efervescência da literatura.
O escritor espanhol Manuel Vicent durante uma entrevista em Madri. Foto: Cézaro De Luca.
– Você sempre desafiou o jornalismo escrevendo literatura. E conheceu, por exemplo, Jorge Luis Borges, Ernesto Sábato, Bioy Casares... O que esse país tem de tão bom para produzir tanta literatura?
– Eu amo a Argentina... É um país que eu realmente gosto, e os argentinos, um por um, são todos maravilhosos... Eu tinha muitos amigos fraternos que vieram para cá em 1976, durante o golpe militar... Borges e Sábato estavam na Feira do Livro de Madri na época. Borges disse ao amigo: "Ernesto, você consegue imaginar quanto valerão os livros que não assinamos no futuro?" Fui à casa do Bioy uma vez... Uma moça da editora Alfaguara foi comigo; ele tinha 82 anos. Ele estava sentado; Ele quebrou o quadril ao cair de um banco enquanto procurava um livro... Ele morava numa casa onde não era preciso ter quadros para saber que morava ali um homem riquíssimo, sem luxo, mas milionário... Ele me contou que Borges ia lá todas as noites, escreviam um livro juntos, conversavam, riam... "Quando ele se casou com Kodama", Bioy me contou, "eu só o deixava vir aos domingos... E ríamos muito... Silvina, minha mulher, dizia: 'Do que esses dois idiotas estão rindo?'..." Eu disse a Bioy: "Quando você teve a sensação de que as mulheres me olhavam e não te viam mais?" Ele respondeu: 'No ano passado'. Morreu no ano seguinte, aos 83 anos... Era rico, bonito. E tinha dormido com metade de Buenos Aires."
Retábulo Ibérico , de Manuel Vicent (Alfaguara).
Clarin